O caso mais emblemático


J.-M. Nobre-Correia

Com olhos de europeu, o caso de Marcelo Rebelo de Sousa e da sua relação com os média portugueses é propriamente espantoso, inacreditável. Aqui está um personagem que diz ter estado entre os fundadores do PPD-PSD, que é seu militante, que foi seu presidente, que continua por intermitência a ser conselheiro em vista da direção do partido e, não mais tarde do que na semana passada, participava num “jantar-comício” da Aliança Portugal (PPD-PSD e CDS-PP) em Coimbra, tomando evidentemente a palavra para mobilizar os comensais.
Não impede que logo no dia seguinte ao das eleições europeias, Rebelo de Sousa estivesse na TVI a fazer de “comentador” ! Uma confusão de géneros que cultiva desde de sempre, primeiro no Expresso e agora na TVI, com uma ou outra travessia do deserto de vez em quando. E esta confusão de géneros — a que se vem acrescentar um insólito estatuto de conselheiro de Estado que, numa democracia a sério, lhe imporia o dever de reserva — parece não incomodar ninguém ou, na melhor das hipóteses, muito pouca gente. Não incomoda em todo o caso jornalistas e editores, pela boa razão que Rebelo de Sousa é um bom ator, no sentido teatral da palavra (como notou em tempos José António Saraiva em crónica do Expresso).
É claro que os espanhóis proprietários da TVI estão-se perfeitamente borrifando para o bom funcionamento do sistema democrático português, do seu meio político e do seu meio mediático-jornalístico. Para eles, o que é preciso é “animar a malta” com um máximo de divertimento (e Rebelo de Sousa sabe divertir, em todos os sentidos da palavra) e suscitar um máximo de receitas publicitárias e lucros (que têm dado muito jeito à ultra-deficitária espanhola Prisa). Pobre país que abandona assim o controle dos seus média de informação de grande audiência !…
Como está longe da Europa civilizada, de velha tradição democrática, este Portugal que se pretende europeu ! Imagina-se um só instante que um militante político (Rebelo de Sousa e todos os demais, mas ele é o caso mais emblemático) possa ser cronista, analista, comentador de um média da Europa democrática ? Peguemos num caso : o de Alain Duhamel, membro da Académie des Sciences Morales et Politiques francesa, autor de 16 livros e de numerosos artigos de ciência política, cronista político de muitos dos melhores média de referência em França desde 1963.
Em fevereiro de 2007, por ocasião de um debate no Institut d’Études Politiques, em Paris, Duhamel confessou que iria votar em François Bayrou nas eleições presidenciais de maio. O debate tinha apenas alunos do dito instituto como público. Mas foi o suficiente para que Duhamel fosse suspenso de toda e qualquer atividade de cronista na televisão France 2 durante o resto da campanha eleitoral que durou ainda quase três meses. Embora, que se saiba, Duhamel nunca tenha aderido a qualquer partido político.
Em Portugal, participa-se alegremente numa campanha eleitoral na terça-feira, em Coimbra, e vai-se comentar na TVI na segunda-feira seguinte, em Lisboa. Num pretenso espírito de independência de puro politólogo, duas noções a que Rebelo de Sousa é manifestamente estranho. O que não impede que as suas prédicas dominicais manobreiras estejam certamente ainda para durar, neste ou naquele jornal, rádio ou televisão. Com exceção dos média do grupo Impresa, de onde Francisco Pinto Balsemão o fez excluir, porque frequentou de perto Rebelo de Sousa e sabe o que a casa gasta [i]
Que Rebelo de Sousa, como professor universitário e conselheiro de Estado, se preste (ou aceite prestar-se) a tais encenações tão pouco jornalísticas e tão pouco politológicas, é dificilmente compreensível. Mas é-o ainda mais, muito mais, que tantos média deste país possam propô-las aos seus públicos, revelando assim a falta de respeito que têm por eles…



[i] Possa embora Rebelo de Sousa ser entrevistado hoje mesmo na « Revista » do Expresso

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