Ainda a propósito das europeias…

J.-M. Nobre-Correia
Resultados houve nas eleições de 25 de maio que surpreenderam e até alguns que criaram preocupação. Há porém que procurar lê-los à luz da evolução da União Europeia e da sociedade democrática…
Escreveram-se montes de artigos sobre os resultados das eleições ao Parlamento Europeu. E os nossos jornalistas, “comentadores” e políticos falaram-nos durante horas do assunto. Mas talvez convenha ainda procurar pôr alguma ordem nas ideias e tecer algumas reflexões sobre os resultados saídos das urnas no domingo 25.
Antes mesmo de evocar os resultados, convém dizer que os eleitores votam raramente da mesma maneira nas eleições legislativas nacionais, nas locais e nas europeias. Nas nacionais, os eleitores têm o sentimento que, do voto que emitem, dependerá o essencial das condições de vida : custo da vida, poder de compra, qualidade do ensino e da assistência médica,… Nas locais intervêm dados de caráter pessoal, tais como o facto de se conhecerem boa parte dos candidatos e as suas competências, de se terem boas, más ou nenhumas relações com eles, de se saber o que já fizeram ou serão porventura capazes de fazer. Enquanto no que diz respeito às europeias, os eleitores sentem que tudo o que diz respeito à União Europeia se passa longe deles e, no fim de contas (e erradamente), não lhe diz sequer respeito.
Estas atitudes totalmente diferentes no que diz respeito aos três tipos de escrutínios explicam que os eleitores se sintam mais ligados pelas opções político-partidárias nas legislativas nacionais. Mais próximos de pessoas e de problemáticas concretas locais no caso das autárquicas. E largamente indiferentes à União Europeia, pelo que, os que se dignam votar, reagem com uma grande dose de mau humor, mandando provocatoriamente para Bruxelas-Estrasburgo gente muitas vezes com posições extremistas. Convém pois relativizar assim os resultados das últimas eleições.
Resultados muito relativos
Mais significativo é o nível de participação no ato eleitoral : apenas 43,09 % em toda a União Europeia. À parte a Bélgica e o Luxemburgo (países onde o voto é obrigatório e a abstenção devidamente punida pela lei, pelo que 90 % dos eleitores foram às urnas), as taxas de abstenção foram perfeitamente calamitosas, variando de 25,19 % em Malta a 86,95 % na Eslováquia, com 65,5 % de leitores que não foram às urnas em Portugal. O que mostra que os cidadãos europeus têm uma ideia péssima, execrável, do que se passa em Bruxelas e em Estrasburgo. Uma perceção tanto mais negativa que ela é reforçada pelos próprios governos nacionais, que justificam regularmente as suas próprias incompetências e insuficiências atribuindo-as a decisões “impostas por Bruxelas”.
É a luz destas elevadas taxas de abstenção que têm que ser interpretados os votos em formações de extrema direita ou eurocéticas. Ponhamos de parte o caso do Reino Unido que é e sempre foi muito mais estado-unidense do que união-europeísta. E reconheçamos que, nesta matéria, o general Charles de Gaulle tinha razão quando sempre se opôs à entrada no Reino Unido na então Comunidade Económica Europeia. Que o UKIP (United Kingdom Independence Party), que atingiu 26,77 % dos votos e se classificou como primeiro partido do Reino Unido, queira que o país se retire da União Europeia é mesmo uma boa notícia para quantos acreditam ainda nos destinos desta. Embora seja evidente que, se o ingresso da Reino Unido foi um primeiro grande erro para a União Europeia, um segundo erro foi a integração de toda uma série de “países de leste” que, historicamente, nunca fizeram parte da mesma Europa cultural e política, e que vieram apenas diluir a União Europeia, impedindo de facto que ela seja aprofundada [1]. Um enorme erro cometido em nome de uma feroz hostilidade à Rússia, país que os Estados Unidos querem absolutamente impedir que possa voltar a ser uma potência rival, preocupação que a União Europeia servilmente tomou em consideração na sua obsessão permanente de alargamento.
Porém, o caso que foi mais posto em evidência nos média portugueses foi de certo modo o da posição alcançada em França pelo partido de extrema direita FN (Front National). Ora, se este resultado de 24,95 % traduz uma certa evolução ideológica e política do país, é preciso relativizá-lo em relação aos 43,16 % de franceses que foram votar, o que em boa matemática elementar corresponde a 10,76 % dos cidadãos com direito de voto. E sabemos bem que, em atos eleitorais, sobretudo em atos eleitorais europeus, são precisamente os eleitores mais mobilizados, mais motivados ou mais tinhosos, que de facto vão manifestar-se nas urnas. Os outros, pura e simplesmente votam “com os pés” e não se apresentam nas mesas de voto.
Confirmações e novidades
No caso da França, é o nível da abstenção que é particularmente significativo : 56,84 % dos inscritos. Porque, no que diz respeito à UMP (Union pour un Mouvement Populaire, sarkozyste), os eleitores experimentam um sentimento de repugnância perante as falcatruas e corrupções em série que têm caraterizado o partido de direita e os seus principais responsáveis, que foram assim penalizados com apenas 20,79 % de votos. Quanto aos eleitores de esquerda, eles estão fartos de um PS (Parti Socialiste) cada vez mais liberal (ou na melhor das hipóteses : liberal-social), menos reformista, com menos coragem para afrontar os desafios atuais num perspetiva progressista e que, aliado ao PRG (Parti Radical de Gauche), obteve miseravelmente 13,98 % de votos. Enquanto que, à esquerda dos socialistas, o Front de Gauche obteve modestamente 6,34 %, incapazes que são as suas componentes [2] de renovar projetos políticos, programas, linguagem e tipos de mobilizações, o que lhes fez perder eleitores e, pior ainda, militantes em favor de um FN que, com Marine Le Pen, inovou em relação ao que o partido foi no tempo do seu pai, Jean-Marie Le Pen. Pior ainda : o conjunto da esquerda (PS-PRG, Europe Écologie e FG) não consegue mais do que 29,23 % dos votos.
Estas constatações em relação ao Parti Socialiste e à esquerda franceses, valem globalmente para os congéneres nos outros países da Europa latina, vítimas há muitíssimos anos da mesma tentação liberal (quando não desde sempre, como no caso português). Com um PSOE-PSC (Partido Socialista Obrero Español-Partit dels Socialistes de Catalunya, 23,00 %) que, apesar de se encontrar na oposição, não conseguiu vencer o PP (Partido Popular, 26,06 %), atualmente no governo. E um PS, em Portugal, que, não obstante uma política “de austeridade” descomedida do governo de direita conservadora (PPD-PSD+CDS-PP), não conseguiu obter mais do que 31,47 %, nem sequer 4 % mais do que a Aliança Portugal constituída por estes (27,71 %).
As grandes novidades na Europa latina vieram antes do mais da subida apesar de tudo limitada do CDU (PCP+PEV), em Portugal, com 12,67 %. Da novidade de Podemos (7,97 %), em Espanha, partido fundado dois meses antes. E sobretudo do PD (Partito Democratico), na Itália, que, embora no poder, alcança os 40,81 %. É verdade que, se há um partido de esquerda que — herdeiro do Partito Comunista Italiano (que foi o maior partido comunista do mundo ocidental) e da esquerda da antiga Democrazia Cristiana — abandonou a maioria das referências aos grandes princípios da esquerda, é bem o PD. Não impede que o jovem primeiro ministro Matteo Renzi está a fazer aquilo que muitos governos de esquerda não fazem : pôr em aplicação uma série de reformas importantes do Estado italiano e de práticas intoleráveis do mundo político, o que tem sido manifestamente apreciado pelos eleitores. E é este sentimento que experimentam os italianos de que o Estado e a vida democrática têm absolutamente, urgentemente, que ser repensados que os tem levado a uma aparente versatilidade nos votos expressos em eleições sucessivas (na Forza Italia, primeiro, no Movimento 5 Stelle, depois) e que sucessivamente os têm deixado decepcionados perante a ausência de iniciativas de fundo nestas matérias.
Acrescentemos a esta situação no sul da Europa, a confirmação da novidade de Syriza (Coligação da Esquerda Radical), com 26,60 %, primeiro partido na Grécia, dez anos apenas depois da sua fundação em 2004.
Uma decomposição avançada
No fundo, os resultados das eleições europeias são particularmente significativos no que diz respeito ao estado da opinião pública nos diferentes países da Europa ocidental. Nos países onde eles tinham uma certa força e até mesmo muita força, os partidos comunistas desapareceram ou estão em vias de desaparecimento (Bélgica, Itália, Espanha, França). E as formações que se afirmam ainda como tal estão reduzidas ao estado grupuscular, incapazes de repensar a ação política em democracia. A exceção é precisamente o PCP que mantem uma audiência e uma implantação populares, verdadeiras incógnitas no que diz respeito à probabilidade de o partido se manter por muitos anos ainda na paisagem política nacional.
Os partidos socialistas estão em plena decomposição ideológica. Em grave crise de identidade em França, em Espanha e em Portugal. Totalmente desconectado dos princípios mais elementares da história do socialismo democrático e do princípio essencial da justiça social, como na Itália, o PD. Mantendo-se como primeiro partido graças a uma real implantação social e a uma prática de clientelismo com incontestáveis aspetos sociais, como no caso do PS na Bélgica francófona (29,29 % [3]). Enquanto que o Labour Party britânico, na oposição, não consegue mais do que 24,74 %, apenas 1,43 % mais do que o Conservative Party (23,31 %), no governo. E a coligação do SPD (Sozialdemokratische Partei Deutschlands, 27,30 %) com a CDU-CSU (Christlich Demokratische Union Deutschlands-Christlich Soziale Union in Bayern, 35,30 %), na Alemanha, tem sido claramente mais benéfica para este que para aquele. Uma configuração partidária e institucional relativamente bloqueada, congelada, faz que a estabilidade seja grande na Alemanha, a CDU-CSU e SPD estando alternativamente à cabeça do governo, quando não associados, como agora, no seio de uma “grande coligação”. E boa parte dos alemães estão globalmente satisfeitos com uma situação em que o euro lhes deu a liderança da União Europeia e um estatuto  dominante na Europa que duas guerras mundiais não lhes tinham permitido alcançar e até lhes puseram o país em ruínas…
Porém, há males que vêm por bem. Se o anti-união-europeísmo crescente no Reino Unido levar o país a retirar-se da União Europeia, tal decisão poderá favorecer o reforço interno desta e uma afirmação mais coerente no plano internacional. O peso crescente, embora na maior parte dos casos relativo, da extrema direita em detrimento muitas vezes da esquerda e até da esquerda radical como do extrema esquerda, obrigará os partidos socialistas, sociais-democratas (no sentido europeu da palavra) e trabalhistas a interrogarem-se sobre uma deriva liberal-social, ou mesmo até puramente liberal, que dura por vezes há uns quatro decénios. Enquanto que a esquerda radical terá que se interrogar sobre a sua aparente incapacidade em sair do leninismo (seja qual for a variante deste), sobre a distância que separa os seus discursos da realidade social e sobre a sua ausência de real inserção social.
Por outro lado, os partidos de direita, liberais ou conservadores, terão que se demarcar claramente da extrema direita, até porque a deriva direitista que atingiu alguns deles não reforçou as posições destes, mas antes credibilizou os discursos da extrema direita, as opções xenófobas, racistas e de exclusão social que a caraterizam. Levando os eleitores a preferirem muitas vezes o original de extrema direita à cópia da direita conservadora.
O regresso do Estado e da ética
Numa perspetiva mais ampla, os resultados das eleições europeias põem em evidência (mais do que no passado) a crise da vida política e das sociedades democráticas. E o facto que é urgente que políticos, “apparatchiks” e eurocratas possam repensá-las. Para que as instituições públicas sejam menos mastodontescas, menos inumanas e menos “caça reservada” para colocar “afilhados” dos partidos políticos. Para que o Estado, mais ligeiro no seu funcionamento, recupere a função essencial de regulador que é historicamente a sua, esvaziada que foi nestes últimos decénios em favor do mundo da finança. Para que a política volte à liderança, em detrimento dos “mercados”, cuja irracionalidade é por demais evidente, sem que isso possa significar um qualquer reforço do que há de inaceitável na conduta dos políticos, dos seus mandatos “ad aeternum”, sem duração limitada, e de uma preocupação por demais generalizada em usufruírem de benesses e alcavalas com que os outros cidadãos nem podem nem sequer sonhar.
Repensar a política e repensar a União Europeia. Se não quisermos que, como funciona a primeira há demasiado tempo, a vaga cinzenta de um novo fascismo assole a Europa. E se a nossa primeira preocupação não for que a União Europa desapareça, vítima da obesidade das suas instituições e da sua incapacidade em aproximar-se dos cidadãos, mas sim que ela funcione antes do mais como um projeto democrático, social e cultural…



[1] Ver a este propósito a citação de Henri Mendras no texto “Um olhar estrangeirado”, in Notas de Circunstância 2, 5 de maio de 2014.
[2] O Front de Gauche reúne oito formações das quais principalmente o Parti Communiste Français e o Parti de Gauche.
[3] Os belgas votam separadamente em « colégios eleitorais » francês, germanófono e neerlandês. Estes 29,29 % no colégio eleitoral francês transformam-se em 10,68 % a nível nacional, o PS passando então de primeiro partido comunitário francófono a quarto partido no plano nacional.

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