Da superioridade ética da República


J.-M. Nobre-Correia
Uma confrontação da atualidade espanhola com a francesa põe em evidência a natureza não-democrática das monarquias…
O novo chefe de Estado espanhol esteve em Portugal em visita de cortesia. E neste clima de entrada em funções (de “proclamação”) e de visitas de cortesia (ao Vaticano, a Portugal, a Marrocos e a França), os média, que adoram histórias de reis, príncipes e fadas, “esqueceram-se” de abordar o essencial. E, neste caso concreto, como foi operada a transição de Juan Carlos de Borbón para o seu filho Felipe.
Ora, esta transição apresenta aspectos perfeitamente chocantes numa sociedade que se pretende democrática. Começando pelo facto que, designado pelo ditador Francisco Franco, Juan Carlos de Borbón ficou no poder mais de 39 anos, sem nunca se submeter a qualquer consulta popular democrática. Mas o dito Borbón, sem fortuna pessoal no início, acumulou uma fortuna colossal durante estes 39 anos, sem que a justiça democrática tenha tido o direito de lhe pedir contas e verificar a proveniência (pouco transparente) dessa fortuna [1].
As razões de uma abdicação
Reconheça-se porém a Juan Carlos de Borbón a perspicácia de ter compreendido (com a ajuda provavelmente da sua “entourage”) que a monarquia se encontrava em queda livre junto da opinião pública no que diz respeito à confiança merecida, enlameada em escândalos sucessivos de há três, quatro anos a esta parte. Escândalos que lhe dizem diretamente respeito a Borbón ou a que estão ligados nomeadamente uma das suas filhas e o marido desta.
Mas Juan Carlos de Borbón percebeu também que a unidade do “último império” na Europa, como lhe chamou Henri Mendras [2], corre sérios riscos. Sobretudo porque a Catalunha se prepara para um referendo que, sejam quais forem os resultados, marcará certamente um afastamento decisivo e progressivo de Barcelona em relação ao poder central de Madrid. Sem esquecer as velhas revindicações bascas que, inspirando-se na evolução catalã, ganharão intensidade, assim como as mais recentes de várias “comunidades autonómicas”.
Terceiro aspeto decisivo : as eleições europeias deixaram antever o fim provável do bipartidarismo (Partido Popular-Partido Socialista Obrero Español) em que assenta o Estado espanhol e que constituiu a base de apoio constante à monarquia juancarlista. Porque, se estes dois partidos representavam mais de 80 % do eleitorado há cinco anos, hoje representam menos de metade. O que quer dizer que o sistema parlamentar espanhol se encontra em fase de fragmentação, criando uma incerteza do que diz respeito ao apoio dos partidos políticos à monarquia.
Juan Carlos de Borbón achou pois que, para salvar a monarquia, era preciso preparar a transição antes que fosse tarde. E no segredo dos corredores do poder, preparou durante meses a sua abdicação, hipótese que ele sempre recusara antes e que nem sequer estava prevista pela Constituição. Flagrante diferença democrática da monarquia com o sistema republicano em que, a menos de falecimento prematuro ou de demissão, os eleitores sabem de antemão quando é que o chefe de Estado chegará ao termo do seu mandato.
Aqui, Borbón decidiu demitir-se (“abdicar”) sem pedir qualquer opinião aos cidadãos, tratando-os pois como meros sujeitos. E, nas coxias do poder, o PSOE traiu o seu ideário republicano apoiando a estratégia de segredo dos partidos do “arco governamental” imposta pela direita do Partido Popular no poder. Votando a lei orgânica necessária para que a abdicação fosse possível, apesar das revindicações da esquerda do partido, das Juventudes Socialistas de España e da maioria dos eleitores do partido que queriam que fosse realizado um referendo propondo aos cidadãos a escolha entre monarquia e república.
Um aforamento inaceitável
Mas a ausência de sentido democrático e da mais elementar ética dos partidos do “arco governamental” ficou ainda mais evidente na elaboração de uma “ley de aforaminento” que subtrai Juan Carlos de Borbón e a sua esposa, assim como a esposa e a filha primogénita de Felipe à justiça normal (para além do próprio novo chefe de Estado, o que é já mais corrente nos regimes democráticos). Tudo o que lhes diga respeito em matéria civil ou penal, em atividades públicas ou privadas, será exclusivamente da competência do Tribunal Supremo. Uma lei que, significativamente, foi votada pelo PP, com a abstenção do PSOE, numa operação contrarrelógio que violou pura e simplesmente o próprio regulamento do Congresso em termos de procedimento.
Juan Carlos de Borbón, protegido pela ditadura franquista, primeiro, e pela imunidade de chefe de Estado durante mais de 39 anos, depois, não passará pois a ser um cidadão justiçável normal. Que diferença com a prática habitual de uma República democrática ! Basta ver a situação na vizinha França, onde o ex-presidente da República, Nicolas Sarkozy, perdida a sua imunidade presidencial, passou a ser alvo da justiça. Devidamente interrogado pelas autoridades judiciárias e até retido durante longas horas em “guarda à vista” tal como prevê a legislação na matéria. Acusado nomeadamente de “corrupção ativa” e de “tráfico de influência ativo”. Acusações que poderiam certamente ser feitas a Juan Carlos de Borbón, se a monarquia espanhola fosse uma democracia que estabelecesse a igualdade de todos cidadão perante a justiça.
Por estas e por outras é que os nossos monárquicos de trazer por casa fariam bem em deixar de falar da “superioridade da monarquia”. Porque, se “superioridade” há, é apenas a de uma casta que antes se dizia “escolhida por Deus” e que hoje já não ousa afirmar tais balelas. Casta que consegue, por um estatuto privilegiado de “ancien régime”, não apenas constitucional mas também económico e social, manter-se à distância do resto dos humanos. Vivendo numa espécie de redoma protetora que permite conferir-lhes mistério e auréola aos olhos dos cidadãos. Protegidos por uma justiça de pés e mãos amarrados, incapaz de lhe impor as leis do Estado de direito, numa inacreditável extraterritorialidade legal que, por conseguinte, a dispensa de prestar qualquer espécie de contas.
Ora, a democracia só o será no sentido pleno da palavra se todos os cidadãos forem iguais em direitos e deveres. O que não é manifestamente o caso em regime monárquico. Mas é-o teoricamente em regime republicano. Constatação que, só por si, permite em princípio estabelecer a superioridade ética de uma República…


[1] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, « Um anacronismo absurdo », in Notas de Circunstância 2, 13 de junho de 2014.
[2] Henri Mendras, L’Europe des Européens, Paris, Gallimard, 1997, 418 p.

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