Da crónica e das suas adulterações
J.-M. Nobre-Correia
Média : Com a abundância de informação veiculada pela internet, passou a ser um
“valor acrescentado” proposto aos leitores. Mas a proliferação de derrapagens
mostra que as caraterísticas elementares são ignoradas…
A crónica é provavelmente um dos géneros
jornalísticos cujos contornos são definidos com menos precisão, dando uma certa
latitude ao seu autor. Há no entanto caraterísticas que lhe são próprias.
Em princípio, a crónica tem como autor uma personalidade que goza de reconhecida
competência no domínio sobre o qual escreve. Trata-se geralmente de
jornalistas com longa experiência, universitários ou intelectuais de renome,
profissionais eminentes em setores de atividade de que se encontram já
retirados.
Publicada com uma dada periodicidade, a crónica trata
de temas ligados à atualidade mais ou
menos imediata. E não de assuntos sem ligação alguma com problemáticas do
momento ou desconectados das mais elementares realidades da vida quotidiana.
Por isto mesmo e porque se trata de um exercício
jornalístico, os elementos fatuais evocados na crónica terão que respeitar os
elementares princípios do rigor.
No entanto, contrariamente ao que é desejável na
grande maioria dos textos de jornal, não se espera de modo algum que o tema da
crónica seja tratado de maneira seca, despojada de efeitos estilísticos, mas sim,
ao contrário, que dê provas de uma certa virtuosidade
da escrita. Autorizando o autor a dar parte das suas impressões, reações,
reflexões sobre o tempo que passa e a sociedade em que vivemos.
Espera-se também do autor da crónica uma certa capacidade de síntese e um perceptível talento pedagógico capazes de fazer
compreender melhor a complexidade da atualidade, até porque a secura da
exposição fatual dos acontecimentos nem sempre permite dar-lhes sentido.
Para além destas caraterísticas essenciais, a
crónica pode ser especializada ou generalista, e mais raramente “diarizada”. A
crónica especializada trata de um
domínio bem preciso da atualidade : política nacional, política internacional,
economia, cinema, música, literatura, média e demais sectores de atividade que
o jornal considera pertinentes. Na crónica generalista,
a latitude do autor é evidentemente mais vasta, o que implica que disponha de acentuada
cultura sobre a vida no mundo e a sociedade contemporânea. Nestes dois
primeiros tipos, a crónica trata de um tema único, enquanto que na “diarizada” (sob a forma de “diário”) são
abordados temas diferentes em função da atualidade dos dias (ou de apenas dos
dias mais marcantes) da semana e mais raramente do mês.
Certas formas de crónica, menos personalizadas,
aproximam-se da análise, a
virtuosidade da pena (…para não dizer do teclado !) sendo então menos exigida
da parte do autor, o que não o dispensa de uma desejável elegância da escrita, num
tom frio e marcado pela distância em relação às pessoas e aos factos. Outras adotam
um tom mais “vivace”, numa subtil pirotecnia de fogo de artifício e de explosão,
voluntariamente polémico, procurando
até por vezes suscitar a contradição. Ou então a forma de escrita é mais
intimista, com um cariz notoriamente literário
e um leve toque poético.
O fundador do diário parisiense Le Monde, Hubert Beuve-Méry, considerava
que, em jornalismo, “le ‘je’ est haissable” (“o ‘eu’ é odiável”) e, desde logo,
durante os 25 anos que dirigiu o seu jornal, não houve textos em “eu”. Mas, em
muitas publicações de referência, a utilização do “eu” é tolerada nos textos de
crónica, sobretudo se esta é assumida por colaboradores exteriores, que não
fazem parte da equipa de redação.
Porém, tal privilégio concedido à crónica não
implica de modo algum que o autor possa cair no egocentrismo exibicionista que
carateriza boa parte das crónicas na imprensa portuguesa. Não só porque o
autores falam demasiadamente deles próprios, como se fossem pessoas
indiscutivelmente importantes, em torno do umbigo dos quais gira a atualidade
no mundo. Mas também porque os mesmo autores concebem a crónica em função das
suas amizades e inimizades pessoais, dos favores que obtiveram de uns ou dos
dissabores que tiveram com outros. Quando os leitores esperam da crónica que
lhes faça saborear a escrita e o prazer do texto, e sentir o subtil frémito de
que um delével raio de inteligência lhes permitiu perceber melhor o mundo em
redor…
Porém, quantos textos classificados como “crónica”
nada têm a ver com este género jornalístico ! É que, nesta como noutras
matérias, as chefias nas redações pecam muitas vezes por ignorância…