O deslize das placas tectónicas...


J.-M. Nobre-Correia
Política : A Europa da política encontra-se em transformação mais ou menos acelerada. Mas esta transformação, que parece também querer anunciar-se em Portugal, poderá muito bem ficar ainda adiada por algum tempo…

Nestes últimos dias, um tema está diariamente presente nos média como nas conversas de café : as eleições na Grécia, a vitória do Syriza, os primeiros passos do novo governo. E, claro está, os comentadores, como sempre, quase nunca duvidam de nada, anunciando catástrofes para a Grécia e a União Europeia, uns, ou novas manhãs de sol radioso para uma Europa em crise, outros…
Ora, o que há de mais significativo com a resultado das eleições legislativas gregas é o facto das placas tectónicas que determinavam a vida política democrática na Europa se terem posto a deslizar de maneira particularmente percetível. E que a arquitetura partidária e ideológica da vida política possa assim vir a ser largamente configurada nos tempos mais próximos.
Uma decomposição anunciada
Durante cerca de século e meio, a Europa democrática viveu num sistema político cuja arquitetura era relativamente clara e estável. Sistema que se foi configurando paralelamente à revolução industrial, primeiro, depois da Primeira Guerra Mundial, em seguida, e após a Segunda Guerra Mundial, num terceiro tempo.
Esquematicamente, a Europa democrática funcionou a nível parlamentar com um partido conservador e outro liberal (no sentido latino da palavra), por vezes reunidos numa só formação, à direita. Com um social-democrata-socialista e outro comunista, à esquerda. Veio acrescentar-se por vezes um partido católico-cristão, conservador em termos económicos e de costumes, mas, segundo os casos, mais ou menos sensível a preocupações sociais.
Para além destes, no período entre as duas guerras mundiais, surgiram poderosos partidos fascista-nazis que puseram rapidamente termo ao sistema parlamentar e democrático. Ou que, quando não conseguiram chegar ao poder, foram condenados ao desaparecimento (para além-Pirenéus), como consequência de uma estreita colaboração com exércitos estrangeiros de ocupação e de práticas políticas marcadas pela brutalidade e a intolerância.
Juntaram-se a estes partidos dominantes, com representações parlamentares mais ou menos significativas, outros eternamente minoritários. Partidos fundamentalmente tribunícios e contestatários, sobretudo “gargarejantes” e, de facto, sem impacto no governo da administração pública e até mesmo na vida social da nação.
Ora, as placas tectónicas desta arquitetura partidária estão claramente a mover-se desde há alguns anos. Digamos : desde os anos 1970 e o início da chamada “crise económica”. Primeiro, com o desaparecimento quase total de alguns partidos comunistas e mais concretamente daqueles que se tinham afirmado eurocomunistas (na Bélgica, na Itália [1], na Espanha), enquanto que o PCF caminha a passos largos para uma evidente marginalização em França.
Depois, os partidos socialistas, sociais-democratas (no sentido europeu da palavra) e trabalhistas passaram a querer afirmar-se cada vez mais como “bons gestores” da “crise económica”. Renunciando lentamente às mais elementares preocupações de justiça social. E passando, na melhor das hipóteses, a ser meros partidos sociais-liberais, vagamente reformistas, acatando venerandamente a ascensão rampante do capitalismo selvagem atual.
Vejam-se todos os partidos europeus desta área, praticamente sem exceção (na Grã-Bretanha, na Alemanha, na Espanha e até mesmo agora em França). O que explica precisamente a crise atual em que alguns deles veem os seus eleitorados “derreter como neve ao sol” : caso flagrante do PASOK grego, que tinha aceitado fazer parte de um governo de direita que impôs uma dura “austeridade”, enquanto que as sondagens anunciam um futuro nada risonho para o PSOE espanhol…
Do lado da direita, os liberais estão cada vez mais conservadores e os conservadores cada vez mais autoritários, vindicativos, reacionários e xenófobos. Atribuindo a longa crise económica atual às conquistas sociais dos meios menos favorecidos e os elevados níveis de desemprego e as recorrentes tensões sociais à presença de importantes comunidades imigrantes. A situação na Grã-Bretanha, na França, na Alemanha ou na Bélgica, por exemplo, é particularmente significativa desta evolução.
As novas componentes
O país onde se assistiu em primeiro lugar à recomposição da arquitetura política foi a Itália, com o desaparecimento quase radical dos três principais partidos políticos : Democrazia Cristiana, Partito Comunista Italiano e Partito Socialista Italiano… E com aparecimento de uma Lega Nord, regionalista, autonomista e xenófoba, uma Forza Italia, regida antes do mais por princípios de “mercática” e de “affairismo”, largamente desprovida de conteúdo autenticamente político, e um Partito Democratico, cada vez mais liberal (um pouco no sentido anglo-saxão) e menos reformista. Todas as outras formações políticas passaram a ser marginais e meramente de complemento. E isto até ao aparecimento mais recente do Movimento 5 Stelle, marcado pelo antipartidarismo e até pelo antiparlamentarismo, “sem posicionamento político”, que ganhou uma considerável audiência e passou a ser a terceira força parlamentar, com um peso eleitoral relativamente equivalente ao das duas primeiras.
Quer isto dizer que, pela primeira vez na Europa, a arquitetura política italiana deixou de refletir a que fora elaborada ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX. E, numa primeira análise, os resultados das últimas eleições legislativas gregas traduzem também uma profunda crise desta mesma arquitetura tradicional, nomeadamente com o quase desaparecimento da área socialista (PASOK e os seus dissidentes de Kinima-Kidiso).
Entretanto, duas componentes novas surgiram no panorama partidário europeu : a extrema direita e os ecologistas. A extrema direita, que vegetou de maneira mais ou menos marginal em França e na Itália, por exemplo, foi ganhando audiência junto do eleitorado nestes últimos anos. Caso já evocado da Lega Nord, na Itália. Mas também do Front National, que as sondagens anunciam por vezes como futuro primeiro partido político em França. E ainda do PVV (Partij voor de Vrijheid), terceiro em importância nos Países Baixos, e do BZÖ (Bündnis Zukunft Österreich), que é eleitoralmente o quarto na Áustria. Enquanto que a NVA (Nieuw-Vlaamse Alliantie), na Bélgica flamenga, membro do atual governo federal, e o UKIP (UK Independence Party), na Grã-Bretanha, com preocupações autonomistas o primeiro e anti-União Europeia o segundo, partilham claramente valores caraterísticos da xenofobia e da extrema-direita tradicional.
Temática típica dos anos de fins da expansão económica e de inícios da “crise”, fins dos anos 1960 e inícios dos anos 1970, a ecologia deu origem a movimentos sociais diversos, antes de desembocar na vida parlamentar. Ganhando grande audiência na Alemanha, primeiro, na Bélgica, em seguida, e em França, depois. Adotando posições políticas flutuantes, entre o centro, o centro-esquerda e a esquerda radical, o que se têm traduzido em coligações locais, regionais ou nacionais bastante contrastadas…
A nova esquerda radical
Porém, nos últimos meses, consequência de certo modo da acentuação da crise financeira desencadeada em 2007, a grande novidade no panorama político europeu é o aparecimento e a afirmação cada vez mais evidente de uma nova esquerda radical. Esquerda radical que se situa entre os tradicionais partidos de centro-esquerda (socialistas e sociais-democratas, no sentido europeu deste último termo) e uma extrema esquerda (comunista e maoístas ou trotskistas).
Apesar da crise profunda que atravessa a sociedade europeia, o centro-esquerda, inserido na área da governação, não põe em questão o funcionamento das instituições, mostrando-se incapaz de propor uma alternativa ao neoliberalismo reinante. Enquanto que a extrema-esquerda, arreigada a dogmas cuja inadequação à sociedade atual está largamente comprovada, recusa obstinadamente assumir a governação ao nível nacional. E uns e outros rejeitam toda e qualquer coligação capaz de imprimir novos rumos à vida política e à gestão do aparelho de Estado.
Esta distância aparentemente intransponível entre o centro-esquerda e a extrema-esquerda deixa aberto um importante espaço de intervenção política. Perfila-se assim uma nova esquerda radical, alheia ao leninismo e não preocupada quase exclusivamente com questões económicas, mas igualmente sensível a questões “societais”, culturais, ecológicas, de género e de costumes.
Surgiu deste modo o Syriza (Coligação da Esquerda Radical), que reúne diferentes formações políticas e governa a Grécia desde a semana passada. Mas também o Podemos, “plataforma cidadã” que as sondagens anunciam como futuro primeiro partido espanhol (embora, daqui até às eleições legislativas do fim do ano, a vida política no país vizinho possa sofrer sobressaltos que alterem substancialmente as intenções de voto). Ou ainda Die Linke, terceira formação parlamentar na Alemanha, e, mais modestamente, o PTB Go, grande surpresa das últimas eleições legislativas belgas. Enquanto que, dos lados de França, o Parti de Gauche encontra dificuldades em afirmar-se solidamente na cena política, embora uma corrente dos ecologistas de EELV encare atualmente aliar-se a ele…
Em Portugal, este espaço, era até agora ocupado pelo Bloco de Esquerda, sê-lo-á também pelo Livre-Tempo de Avançar, aliança eleitoral selada sábado passado, e até talvez por Podemos Juntos, projeto em que reina por enquanto uma certa confusão. O que põe em evidência um aspeto fundamental : enquanto se assiste a um sensível deslize de placas tectónicas na Europa que provoca o aparecimento de uma grande formação de esquerda radical entre o centro-esquerda e a extrema-esquerda, em Portugal é a fragmentação que está à vista. O que não deixará provavelmente de limitar os resultados eleitorais do PS à esquerda, atacado também que é à direita pelo novo Partido Democrático Republicano.
As próximas eleições legislativas portuguesa de setembro-outubro dirão qual a dimensão do espaço situado entre o PS e o PCP. E quantas formações políticas o ocuparão e com que importância. Mas, se o Livre-TDA não surgir como um força de peso e aliado incontornável do PS num governo de coligação, a evolução a que se assiste atualmente em diversos países da Europa poderá muito bem ficar em Portugal adiada para as eleições seguintes. Uma perspetiva plausível se o PS vier a aliar-se ao PSD numa grande coligação “de salvação nacional”, antecipando assim o seu potencial desmoronamento, sobretudo se a “austeridade” continuar a dominar a política desse governo…



[1] A história do vertiginoso e espantoso desaparecimento do maior partido comunista da Europa Ocidental, o PCI, está ainda por fazer…

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