A esquerda mais inapta…
J.-M. Nobre-Correia
Política : A desunião em França favorece grandemente a direita. A fragmentação em
curso em Portugal tem grandes probabilidades de provocar o mesmo efeito. Num
contexto socioeconómico e político bem mais inquietante…
Secretário geral da SFIO [1]
de 1946 a 1969 e presidente do conselho em 1956-57, Guy Mollet declarou um dia
: “a direita francesa é a mais estúpida do mundo” [2].
Só que, como o fazia notar recentemente o politólogo Alain Duhamel, tal
sentença pode, sem hesitação, ser agora aplicada à esquerda francesa. Basta ver
como a “direita republicana” (UMP-UDI) se apresentou unida nas eleições
departamentais de domingo passado. E como a “esquerda republicana” foi incapaz
de união frente a uma UMP de Nicolas Sarkozy cada vez mais neoconservadora e a
uma Frente Nacional cujo substrato fascizante é inegável.
A fragmentação da esquerda fez assim que o Partido
Socialista (e os seus aliados) tenha obtido 21 % dos votos, o Front de Gauche
(Frente de Esquerda que inclui o Partido Comunista) apenas 6,1 % e a EELV (Europe
Écologie Les Verts) uns modestíssimos 2 %. Dada a natureza do escrutínio, isto
significa que o FG e a EELV se autoeliminaram da segunda volta, retirando porém
um volume de votos importante à coligação PS-PRG (Parti Radical de Gauche) atualmente
no poder. Situação que deixa de certo modo antever o que acontecerá também nas
próximas eleições legislativas em Portugal.
Só que, aqui, a fragmentação do eleitorado de
esquerda será ainda maior do que em França. Porque, para além da habitual disputa
entre Partido Socialista e Partido Comunista (PCP), os eleitores serão confrontados
a uma miríade de formações : PDR, PTP-Agir, Livre-Tempo de Avançar, Juntos
Podemos-MAS, Bloco de Esquerda, mais os eternos PSR, MRPP e sabe-se lá mais
quem ! Porque esta esquerda está minada por rivalidades e egocentrismos de
vedetas cuja primeira preocupação é não sair de debaixo das luzes da ribalta
mediática.
Ora, a situação portuguesa é incomparavelmente
mais grave do que a francesa. Com uma direita neoconservadora cuja preocupação obsessional,
omnipresente, é reconstituir as estruturas socioeconómicas “do antigamente”, do
antigo regime. Pelo que não é com uma esquerda fragmentada para além do mais
elementar bom senso que se poderá antever um novo curso da vida política
portuguesa para depois das próximas eleições legislativas.
Enquanto na Grécia e em Espanha surgiram formações
que conseguiram reagrupar boa parte da chamada esquerda radical [3],
em Portugal a fragmentação avança e torna-se cada dia mais notória. É certo que
a esquerda portuguesa tem uma história diferente da grega (marcada pela
resistência à ocupação nazi e a guerra civil de 1946-49) e da espanhola
(marcada pela guerra civil de 1936-39). Enquanto que é a história do 25 de
abril de 1974 ao 25 de novembro de 1975 que marcará por algum tempo ainda o contencioso
entre o PS e o PCP. Deixando dificilmente imaginar um entendimento
governamental entre estas duas principais formações da esquerda.
Deverá concluir-se, à maneira de Guy Mollet, que
Portugal tem a esquerda mais estúpida do mundo ? É verdade que ela desenvolve
um prodigioso ativismo e uma impressionante irresponsabilidade para provocar a
sua própria perda. Digamos em todo o caso que Portugal tem uma esquerda particularmente
inapta para assumir as responsabilidades sociais e políticas que a situação
atual exige e a que os cidadãos têm direito. Comprazendo-se num
umbigo-centrismo de microcosmos intelectuais assaz distantes das realidades comezinhas
das gentes deste país…
Federar a esquerda para além do PS e do PCP é porém
de uma absoluta urgência [4].
Porque só a união faz a força. Para contrapor à aliança bicéfala permanente da
direita. E para permitir coligar-se com quem (PS ou PCP) queira imprimir um
novo curso à vida política e constituir uma autêntica alternativa reformadora e
progressista marcada por uma preocupação absoluta : a justiça social num Estado
de direito…
[1] A SFIO (Section Française de l’Internationale
ouvrière) foi a formação política que, de 1905 a 1969, precedeu o Partido
Socialista criado precisamente em 1969.
[2] Em francês : « La droite
française est la plus bête du monde ». Podendo a palavra « bête »
ser traduzida por estúpida como por burra…
[3] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia,
« O deslize das placas tectónicas », in Notas de Circunstância 2, 6 de fevereiro de 2015.
[4] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia,
« Prólogo de uma crise anunciada », in Notas de Circunstância 2, 27 de fevereiro de 2015.