Uma indesejável confusão


J.-M. Nobre-Correia
Média : De tempos a tempos, regularmente, a torto e a direito, fala-se por aí de censura. Como se, em decisões recentes, houvesse algo de comparável com o que Portugal conheceu sob o salazarismo…

Anda por aí uma polémica que em nada ajuda a compreender o funcionamento dos média. Até porque a confusão dos conceitos é total. Confusão voluntária e claramente assumida para vitimizar seriamente quem foi objeto de uma decisão. E para desacreditar gravemente quem a tomou.
Mas esta confusão não tem nada de atual, de recente. Fala-se de censura a torto e a direito. Quando um texto ou peça não é publicado. Quando um colaborador exterior é dispensado ou membro da redação despedido. Quando uma rubrica ou emissão muda de página, de configuração ou de horário. Ou quando esta é pura e simplesmente suprimida…
Censura e critério editorial
Só que há duas noções que não devem ser confundidas : censura e critério editorial. E só quem esteja de má fé ou não tenha conhecido a censura salazarista pode continuar a confundi-las. É que, para haver censura, tem que haver uma instância exterior à direção editorial do média, capaz de ação coercitiva. Capaz de estabelecer a priori critérios que deverão ser escrupulosamente respeitados. E capaz de aplicar a posteriori penalidades e mesmo severas medidas de repressão ou até de interdição definitiva.
Havia assim no tempo do salazarismo temas pura e simplesmente impossíveis de abordar. Mas havia também termos lexicais e argumentos totalmente banidos. Ou autores cujos nomes e produções eram automaticamente suprimidos (graças à benevolência de diretores mais esclarecidos, alguns deles recorriam então a pseudónimos, apenas conhecidos por estes diretores, para poderem continuar a escrever …e a sobreviver intelectualmente e/ou financeiramente).
Ora, não é isso que acontece hoje em Portugal. Pelo que falar de censura é absurdo. E mais grave : falar de censura em nada esclarece os cidadãos sobre os mecanismos que regem o funcionamento dos média. Nem sobre a natureza dos média em Portugal.
Em Portugal, como no resto das democracias parlamentares, a atividade jornalística é regida por um certo número de princípios. Princípios discutíveis que pretendem constituir o vade mecum capaz de garantir uma cobertura tecnicamente mais profissional, rigorosa e independente da atualidade. A eles se vêm juntar depois os critérios editoriais estabelecidos pela direção editorial de cada média. Critérios que vão dotar este média da sua identidade editorial própria e distingui-lo dos demais média.
Estes critérios editoriais são globalmente equacionados em torno de duas grandes linhas diretivas. Por um lado, a sensibilidade social, política, económica e cultural do média, o seu posicionamento perante a vida da sociedade e do mundo que são os seus. Por outro, a maneira como são concebidos a profissão de jornalistas, o exercício do jornalismo e o tratamento da informação. E é em torno destas grandes linhas diretivas que é formada uma equipa de redação e constituído um leque de colaboradores. Mas também é a partir delas que é definido um conteúdo editorial, com as suas rubricas e a sua hierarquização dos factos de atualidade.
Questões de coluna vertebral
São precisamente estes critérios que levam a direção editorial de um média a dar a prioridade a este ou àquele tema da atualidade, a este ou àquele tipo de conteúdo, a este ou àquele tipo de tratamento de sujeito, a este ou àquele redator ou colaborador exterior. E é perfeitamente normal que, quando achar oportuno, a direção editorial de um média tome decisões que possam escapar em maior ou menor medida à rotina dos conteúdos, páginas e horários, redatores ou colaboradores.
Em rigor, só num caso é aceitável falar de censura : quando instâncias exteriores à direção editorial de um média (governo nos média públicos, acionistas nos privados) impõem que dados temas da atualidade não sejam nunca tratados ou que certas personalidades sejam automaticamente silenciadas [1]. Tudo dependerá então do grau de rigidez da coluna vertebral da direção editorial, preferindo acomodar-se nos seus pequenos interesses pessoais ou assumir com rigor os princípios da ética e da deontologia da profissão.
Deixe-se pois de falar de censura a torto e a direito. Até porque a situação dos média em Portugal é suficientemente preocupante em termos de pluralidade, de pluralismo, de diversificação, de concentração da propriedade e de indigência dos conteúdos, para que se distraiam as atenções e se divirta a galeria evocando esse terrível monstro de outros tempos chamado censura…



[1] Neste caso, os francófonos utilizam a significativa expressão « postos(as) no cemitério » : mis(es) au cimetière…

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