Em nome da História
J.-M. Nobre-Correia
Política : Portugal tem sido ao longo dos séculos um país de emigrantes. E foi
demasiadas vezes um país que obrigava muitos dos seus a procurar refúgio em
terras mais tolerantes. É agora tempo de pagar o seu tributo…
A atualidade recente em matéria de migrantes e
refugiados suscita reações marcadas mais pela emoção do que pela razão. Não que
a emoção não seja legítima e estimável, que o é. Mas, nesta como noutras
matérias, pelo menos num segundo tempo, convém procurar reagir com a razão. Até
porque esta atualidade recente tem já longos meses de vida. Sem que as
autoridades políticas da União Europeia, e mais especificamente de Portugal,
tenham procurado seriamente soluções realistas, concretizáveis. E sem que os
cidadãos, os simples cidadãos, se tenham mostrado suficientemente interessados
em suscitar estas ou outras soluções e em participar na sua concretização.
É possível que, como disse em tempos Michel Rocard
(então primeiro ministro socialista francês), a Europa não possa “acolher toda
a miséria do mundo” [1]. Mas há
deveres morais a que a Europa não pode eximir-se. Até porque, em grande parte,
os homens, mulheres e crianças que procuram nestes últimos tempos instalar-se
na Europa foram vítimas de guerras que europeus (com ou sem aliados
estado-unidenses e a maior parte das vezes por instigação destes) desencadearam
irresponsavelmente em países do Próximo Oriente e do Médio Oriente, assim como
no Norte de África e na África Subsaariana, sem esquecer os Balcãs e até as
intervenções agora na Ucrânia.
Economia e cultura
É certo que a Europa, e mais particularmente a
União Europeia, debate-se com sérios problemas de desemprego e de coabitação
cultural. Desemprego que atinge nalguns países valores de 10, 20 e mais por
cento. E, não sendo boa parte dos candidatos à instalação na Europa gente com
uma evidente formação escolar e profissional, isso fará aumentar a concorrência
nos postos de trabalho a baixo salário e descer assim ainda mais o nível deste
salário. Enquanto que a coabitação entre populações com origens
étnico-culturais diferentes bastante marcadas nem sempre tem sido fácil nos
países onde são já demograficamente importantes. Com tendência a constituírem-se
em “comunidades” fechadas sobre si mesmas e a recusarem os parâmetros culturais
e as condutas comportamentais das sociedades de acolhimento.
A Europa tem porém o dever moral de acolher estas
populações desvalidas, em procura de paz e de uma vida melhor. Mas tem também o
dever de prever um enorme esforço de formação e de verdadeira integração destes
homens, mulheres e crianças no seio das sociedades dos seus Estados membros.
Com os deveres e os direitos dos outros cidadãos, e sem marginalizações que só
poderão trazer futuras dificuldades para as sociedades de acolhimento. De modo
a que estes “novos europeus” venham a reforçar o peso demográfico da União
Europeia e a relançar uma desejável nova dinâmica social, económica e cultural.
No caso português, este dever moral de acolhimento
tem múltiplas razões de ser. Não só porque Portugal também participou, à sua
escala, em algumas das intervenções militares já evocadas (e convém recordar
aqui a célebre Cimeira das Lajes, nos Açores, em março de 2003, onde foi
acertada a intervenção militar contra o Iraque de Saddam Hussein). Mas também
porque Portugal colonizou durante seis séculos populações de outros
continentes, praticando a partir delas um intenso e abominável tráfico de
escravos, e nelas manteve atrozes guerras coloniais durante pelo menos treze
anos (para falar apenas nas dos anos 60-70 do século passado). Ou ainda porque
tem sido ao longo dos séculos um país de emigrantes levados a procurar uma vida
melhor em países estrangeiros. E um país de intelectuais e opositores obrigados
a procurar refúgio em paragens mais tolerantes, clementes e generosas.
O tributo devido
País que deu ”novos mundos ao mundo”, Portugal não
pode agora ficar fora da História e das vagas humanas que a atravessam. Não só
porque, manifestando abertura e generosidade em relação a uma cruel crise
humanitária desconhecida há mais de 70 anos, fará frente à desertificação do
seu “interior”, à preocupante erosão demográfica e ao inevitável envelhecimento
da sua população. Mas também porque tem assim a ocasião de pagar o tributo que
deve há muito, há demasiado tempo, à História e a uma Humanidade que tantas
vezes soube acolher os portugueses em procura de pão e de liberdade, numa
palavra : de felicidade…
Texto publicado no semanário Fórum Covilhã, Covilhã, 8 de setembro de 2015, p. 20.