Ensinamentos a não perder de vista
J.-M. Nobre-Correia
Política : Houve durante a campanha para as legislativas uma vaga de ataques ferozes
que deixaram marcas na memória dos eleitores. E que conviria agora ultrapassar,
se a esquerda quiser de facto construir alternativas viáveis…
Impossível dizer neste momento que coligação irá assumir
o governo da nação nos próximos tempos. Mas o que parece evidente é que uma
página nova da história contemporânea portuguesa foi aberta com o diálogo
inaugurado entre o Partido Socialista, o Bloco de Esquerda e o Partido
Comunista Português. Um diálogo praticamente inexistente desde o “verão quente”
de 1975.
O BE deu o primeiro sinal de abertura em relação ao PS
ainda durante a campanha eleitoral. O PCP manifestou uma posição clara em
relação ao PS logo depois de conhecidos os resultados das eleições. O PS,
dececionado com estes resultados, abriu largamente o leque das alianças
pós-eleitorais possíveis [1]. E o
“povo de esquerda” manifestou repetidamente o seu regozijo com esta novidade da
cena política nacional.
Uma amarga
recordação
Nada impede porém, quando a memória não é curta, que este
mesmo “povo de esquerda” tenha ficado com uma amarga recordação : a de uma
esquerda que se digladiou aberta e irresponsavelmente durante a campanha
eleitoral. Ou melhor : a de um BE e de um PCP que tomaram o PS como principal
alvo dos seus ataques, das suas críticas acerbas. Situando a maior parte das
vezes o PS na direita política parlamentar. Não tendo sequer a preocupação em
distinguir a prática da direção do PS com o que a natureza autêntica de boa
parte dos seus militantes e eleitores. O que faz que muitos nesse mesmo “povo
de esquerda” tenham agora dúvidas sobre a lealdade das negociações em curso
entre os três partidos, assim como sobre a possível viabilidade destas
negociações.
Aconteça pois o que acontecer nos próximos tempos, haverá
uma lição a tirar para os três partidos da esquerda portuguesa : saber escolher
os alvos das críticas ferozes, dos duros ataques, não esquecendo que eles se
devem situar prioritariamente no campo oposto. E saber também não hostilizar,
não marginalizar os militantes e eleitores do PS, componentes naturais desse
mesmo “povo de esquerda”.
Ora, nestes dias de negociações para a formação do
governo, mas também de início da campanha para as eleições presidenciais, seria
desejável que os candidatos originários da esquerda não esquecessem estes
princípios. Tanto mais que há para já cinco candidatos vindos desta área,
vários “técnicos especialistas” da matéria pretendendo que, na perspetiva de
uma segunda volta, é bom ocupar todo o eleitorado próprio a cada especificidade
da esquerda…
É possível que assim seja. Só que, uma vez mais, a
esquerda põe assim em evidência as suas divisões, sobretudo perante uma direita
unida atrás de um candidato único, ao qual os média deram irresponsavelmente
popularidade durante tantos e tantos anos. E de um e outro candidatos de
esquerda (ou das suas hostes) já se ouviram palavras de autojustificação que
não foram especialmente simpáticas para com os outros candidatos do mesmo campo.
Pelo que, caso venha a haver uma segunda volta, haverá inevitavelmente
eleitores que se recordarão dos epítetos pouco agradáveis de que foi alcunhado
o novo candidato único de esquerda.
A indispensável
união
Em tempos de indispensável união, seja qual for a
coligação que venha a assumir o governo da nação, esta divisão da esquerda é
deplorável. E ainda mais deplorável quanto é certo que, pela primeira vez desde
há quatro decénios, se abriu um horizonte novo. Se vier a ser governo, a
esquerda terá que saber trabalhar junta, ultrapassando quezílias requentadas de
capelas, historicamente anacrónicas. E se não vier a assumir o governo da
nação, terá que se posicionar para se encontrar em situação de força aquando de
novas eleições legislativas que poderão muito bem vir a ter lugar já em 2016.
Até porque o “povo de esquerda” perdoará dificilmente ao PS, ao BE e ao PCP o
prosseguimento de tão suicidária desunião…
[1] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia,
« Responsabilidades históricas inadiáveis », in Notas de Circunstância 2, 6 de outubro de 2015.