Outra viragem inadiável


J.-M. Nobre-Correia
Média : Que a esquerda venha a assumir ou não o governo da nação, a fase política que se anuncia supõe uma nova prática jornalística capaz de suster o augurado novo curso da sociedade portuguesa…

As peripécias que atravessam atualmente a vida política confirmam que estamos a viver um momento histórico. Ou pelo menos um momento de prováveis viragens históricas suscetíveis de desencadear recomposições da cena política nacional [1].
Mas, para além destas (quase) evidências de natureza sociopolítica, há no contexto atual outra evidência que, ela, salta também aos olhos. A de um jornalismo e de média de informação largamente dominados por gente com mentalidade militante, grande impreparação técnica e cultural, e enorme má-fé, que se trate de jornalistas ou de “comentadores”. Gente cuja ligação à direita é por demais evidente e jornalisticamente insuportável.
Por um jornalismo diferente
Tal constatação deveria porém levar a esquerda política e os jornalistas de esquerda a considerar que há uma urgente necessidade de dispor de média que pratiquem um jornalismo diferente. Um jornalismo com critérios de seleção dos factos de atualidade diferentes. Com critérios de hierarquização diferentes. Com formas de tratamento diferentes. Com preocupações de contextualização histórica, económica e sociocultural. Tomando a devida distância em relação aos factos e aos personagens. Conhecendo e praticando com rigor a língua portuguesa e o sentido preciso das palavras.
É que, nos média dominantes, o jornalismo praticado (e haverá quem prefira mesmo designá-lo por “jornaleirismo”, para marcar a diferença) é largamente descerebrado, inculto, obsequiador, acrítico. Preocupado angustiadamente com a salvaguarda do seu estatuto hierárquico no seio da redação ou mais simplesmente (e compreensivelmente) a defesa do seu posto de trabalho. Prática que, inevitavelmente, só pode ser a de um jornalismo às ordens, às ordens sobretudo dos senhores no poder (económico, político, social, cultural) e da ideologia dominante, fundamentalmente de direita e cada vez mais conservadora.
Para além disto, há uma preocupante “concentração” das funções de informar e de comentar. A primeira é reflexo da omnipresença da agência Lusa, devida ao facto que a grande maioria dos média não dispõe de meios financeiros que lhes permitam dispor dos serviços de outras agências de informação. A segunda é fruto de um grupelho de jornalistas, políticos e académicos constituído em clique de amigalhaços (sobretudo de Lisboa e um pouco do Porto) que assumem a função de “comentadores” em diversos média (imprensa, rádio e televisão) e até em matérias totalmente diferentes (política nacional, política internacional, economia, cultura, desporto,…), debitando as mesmas “verdades” sobranceiras e indiscutíveis.
Ora, a desejável mutação do jornalismo praticado em Portugal tem que vir necessariamente dos jornalistas eles mesmos. São eles, aqueles conscientemente insatisfeitos com a toada geral, que têm que tomar iniciativas de modo a favorecer o aparecimento de uma nova vaga. Até porque as novas tecnologias, e sobretudo a internet e o digital, permitem criações de média bem mais ligeiros do que outrora no que diz respeito às estruturas de funcionamento e aos custos.
Um enorme mistério
Há porém um enorme mistério na sociedade portuguesa : há cada vez mais jornalistas experimentados no desemprego e jornalistas acabados de sair das escolas mais diversas sem postos de trabalho, e, no entanto, as iniciativas nesta matéria são praticamente inexistentes (com a exceção do Observador, claramente marcado à direita de maneira assaz militante). Quando as iniciativas em Espanha, em França ou na Itália, por exemplo, são cada vez mais numerosas [2]. Dando por vezes a prioridade à informação bruta, puramente fatual. Outra vezes privilegiando as análises (caso de Slate.fr). Outra vezes ainda limitando-se a crónicas de jornalistas experimentados (como Entreleslignes.be) [3].
A viragem política histórica que se operará provavelmente em Portugal nos próximos tempos só poderá tornar-se realidade se a “classe política” de esquerda estiver à altura da nova situação, for capaz de assumi-la e conduzi-la a bom porto. Mas também se o “povo de esquerda” souber implicar-se no novo curso da história, suscitando e apoiando as indispensáveis mutações socioculturais e económicas. E para que estas duas condições venham a ser possíveis, é indispensável que o primeiro como o segundo atores possam dispor de uma informação de qualidade concebida segundo critérios fortemente diferentes daqueles que, hélas !, dominam a cena mediática portuguesa atual…



[1] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, « As viragens prováveis », in Notas de Circunstância 2, 29 de setembro de 2015.
[2] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, « Interrogações de um estrangeirado perplexo », in Notas de Circunstância 2, 17 de junho de 2014.
[3] O novo Ponto3, lançado em 25 de outubro, corresponde um pouco a este terceiro tipo, reunindo (por enquanto ?) apenas três cronistas.

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