Responsabilidades históricas inadiáveis


J.-M. Nobre-Correia
Política : Há quem veja nos resultados das eleições de domingo uma situação trágica para o futuro do país. Mas o otimismo da vontade que permite o pessimismo da razão deixa antever potenciais novas perspetivas…

Como era previsível, os resultados das eleições legislativas de domingo constituirão provavelmente uma viragem na história portuguesa contemporânea [1]. Por variadíssimas razões. A primeira das quais é a elevadíssima abstenção : 43,07 % dos eleitores não foram votar. Disseram-se e escreveram-se por aí coisas incompreensíveis sobre este nível de abstenção. E nomeadamente que os eleitores tinham acorrido numerosos às urnas. Que havia filas como não se tinha visto desde os anos 1975 e 1976…
Ora, a triste realidade é que, com 43,07 % de abstenção, foi quase metade da população com direito de voto que não foi votar. Dir-se-á que os cadernos eleitorais não estão atualizados, nomeadamente no que diz respeito à enorme emigração destes últimos anos. E imaginar-se-á até que muitos destes recentes emigrantes não tiveram a preocupação de se inscrever nos consulados portugueses ou mesmo, mais simplesmente, de declarar à administração pública portuguesa que deixavam o país.
Desespero negro ou grande lucidez ?
Porém, a realidade é que, apesar de uma dura política de austeridade, de cortes nos salários, nas reformas, nas condições de acesso ao ensino, à assistência médica e à proteção social, quase metade dos portugueses não se sentiram minimamente motivados para votar. Estranho povo a quem tanto foi retirado em termos de condições de vida e que não sente necessidade de se pronunciar sobre o assunto, quando tem finalmente a oportunidade de o fazer ! A não ser que este povo se encontre mesmo num estado de desespero tão negro, que nenhuma, absolutamente nenhuma das dezassete / dezanove listas diferentes de candidatos tenha merecido a sua consideração.
A outra hipótese é que este povo possua uma tal lucidez e um espírito de abnegação tal que tenha compreendido bem, muitíssimo bem, a política que foi a da coligação PSD-CDS durante quatro anos. Só assim se poderá compreender que lhe tenha dado 38,55 % dos votos e 104 deputados (99 mais 5 do PSD sozinho) [2], fazendo dela a lista mais votada. Ora, em democracias europeias solidamente instaladas, os eleitores penalizam sempre os governos que lhes reduziram seriamente as condições materiais de vida. Não foi exatamente isso que aconteceu no domingo em Portugal, embora seja verdade que a coligação PSD-CDS tenha ficado longe da soma dos resultados do PSD e do CDS em 2011 : menos 11,82 % dos votos e menos 25 deputados.
No entanto, a coligação não dispõe da maioria absoluta e é minoritária em relação ao conjunto das três forças (ou quatro partidos) consideradas como fazendo parte da esquerda : PS, BE e CDU (ou PCP e PEV). E é interessante constatar que o PS com 85 deputados (mais 12 do que em 2011) e o BE com 19 (mais 11) fazem precisamente jogo igual com o PSD-CDS : 104-104 [3]. E se se acrescentarem os 18 da CDU (mais 1 do que em 2011), a esquerda será maioritária na Assembleia da República…
Só que esta “maioria” é perfeitamente teórica. Embora seja verdade que o Bloco de Esquerda, muito claramente, e o PCP, mais timidamente, tenham feito aberturas em direção do PS. Aberturas mais claramente afirmadas depois de conhecidos os resultados da eleições. Mas, de mármore durante a campanha eleitoral, de mármore ficou o PS na noite das eleições e no dia seguinte, as declarações neste sentido tendo-se sucedido. Pelo menos da parte de António Costa e do PS “oficial”, pois algumas personalidades em vista do partido começaram a reivindicar um “entendimento à esquerda”.
A nova arquitetura da esquerda
No entanto, nada nos garante, por enquanto, que este “entendimento à esquerda” venha a concretizar-se. Até porque há uma “cultura” suficientemente anti-PS em certas franjas do BE e claramente anti-PS em boa parte do PCP. Enquanto que o PS está desde sempre marcado a ferro por uma “cultura” muito pouco socialista e até mesmo pouco social-democrata, no sentido europeu e histórico-político da palavra.
Porém, a eleições de domingo constituirão decerto uma viragem histórica para a esquerda portuguesa. À força de se afirmar “europeísta” — o que não quer dizer literalmente nada e significa na melhor (…ou pior !) das hipóteses uma submissão incondicional à pura lógica de mercado que domina a União Europeia — e tão bom ou melhor gestor da “coisa pública” em pura lógica de capitalismo liberal, o PS continuará a resvalar para águas que pouco têm ainda a ver com o seu programa fundador. E persistindo em continuar a fazer do PSD o seu rival-parceiro preferido na gestão dos assuntos de Estado, o PS corre um sério risco de ver desaparecer o seu eleitorado tradicional, que deixa de ver nele a preocupação de reformismo e de justiça social que espera de um partido dito “socialista”.
Eleição após eleição, o PCP dá provas de se manter como um reduto com poucas probabilidades de grande expansão eleitoral. Até porque a sua “cultura” de posições fortes e inabaláveis faz que consiga manter-se significativamente no panorama político e social, quando grande parte dos seus antigos “partidos irmãos” foram desaparecendo com uma espantosa rapidez quando meteram um dedo na engrenagem de uma certa social-democratização. Pelo que, entrar numa lógica governamental ou até mesmo só numa lógica parlamentar de maioria comporta potencialmente riscos de desagregação da fortaleza ideológica.
Já a nova posição do BE é claramente mais confortável, na medida mesmo em que passa a ocupar de facto a posição de partido pivô da esquerda, entre o PS e o PCP. E provavelmente até como novo polo da atração dos que embarcaram nas aventuras decepcionantes do Livre ou mesmo do Agir. Mas, num caso como no outro, será necessário que o BE dê provas de abertura real (e não apenas de abertura tática), capaz de diálogos construtivos com as diversas formações de esquerda e com os órfãos de uma formação de esquerda solidamente implantada no tecido social, capaz de alianças concretas e diversas a nível autárquico, parlamentar e governamental.
Os sinais que o PS terá que dar
Nas circunstâncias atuais, é o PS que tem urgentemente que dar sinais claros. Sinais de que pretende mudar de rumo, renunciar a um posicionamento centrista que não lhe fez ganhar votos mas antes o fez manifestamente perder parte do seu eleitorado tradicional em favor de organizações situadas à sua esquerda. Sinais que se tornarão manifestamente claros quando for constituída a Mesa da Assembleia da República e escolhido o seu presidente, quando o novo governo se apresentar aos deputados e quando o orçamento de Estado lhes for submetido.
Jogar-se-á pois nos próximos dias, nas próximas semanas, não só o futuro da política de austeridade, do seu abrandamento ou da sua acentuação, mas também o futuro da esquerda portuguesa. O futuro do PS será posto em causa, entre nomeadamente perspetivas grega, francesa e inglesa. Capaz de vir a ser o grande partido aglutinador de um largo centro-esquerda (…mais de esquerda do que centrista), preocupado com o reforço da justiça social e a constituição de uma verdadeira alternativa às políticas da direita PSD-CDS. Ou de soçobrar e vir a transformar-se numa diminuta e vaga reminiscência do que foi e daquilo que muitos esperaram que viesse a ser…
Da lucidez e do sentido das responsabilidades do PS, do BE e do PCP dependerá o futuro da democracia portuguesa. Do reforço das suas dimensões política, social, económica e cultural. Ou do retrocesso com que a direita (ou pelo menos os meios atualmente dominantes na direita) tanto sonha, acentuando ainda mais as desigualdades sociais e afirmando o poder de uma nova classe social fruto do partidarismo político, aliada aos antigos senhores “donos disto tudo” oriundos do antigo regime…



[1] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, « As viragens prováveis », in Notas de Circunstância 2, 29 de setembro de 2015.
[2] Faltam ainda apurar os votos e os mandatos dos círculos eleitorais da Europa e de fora da Europa.
[3] Antes do apuramento dos votos dos leitores fora do país, recorde-se.

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