Um Berlusconi mais performante
J.-M. Nobre-Correia
Média : A campanha para as eleições presidenciais mostra bem a urgência que há em
repensar o modo como média e jornalistas concebem a informação. E como ao longo
dos anos impuseram o candidato “Marcelo”…
Seja
qual for o desfecho que a campanha para as eleições presidenciais venha a ter, média
e jornalistas deveriam tomá-la como tema de reflexão. Urgentemente. E não só
sobre a maneira como cobriram a dita campanha. Sobre as prioridades que deram a
tal ou tal outro personagem ou tema. Sobre as formas de tratamento que adotaram
para abordá-los. Até porque, no fim de contas, estas e outras interrogações se
põem de maneira geral e constante no que diz respeito à maneira como a
informação é concebida neste país…
Mas
a principal interrogação que as eleições presidenciais propõem é a que diz
respeito a Marcelo Rebelo de Sousa. Um personagem nascido e criado na fina-flor
do salazarismo, denunciador de comunistas ou simples opositores ao regime, que depois
do 25 de Abril se pôs a utilizar os média para intrigar e manobrar. Nas
célebres páginas 2 e 3 do Expresso,
primeiro. Depois no Semanário e
bastante mais tarde na dupla penúltima página do Sol. Paralelamente na TSF
e em seguida na TVI, na RTP e de novo na TVI.
A aberração jornalística
A dupla
página no Expresso como no Sol e a emissão dominical na TVI (para falar apenas naquelas a que
pudemos ter pessoalmente acesso) constituíam em termos jornalísticos perfeitas
aberrações. Em termos de tamanho (gigantesco), de escrita (singularmente
descosida) e de temática (exageradamente saltitante), nenhum média europeu norteado
por princípios profissionais teria aceitado assumi-los. Até porque não tinham
parentesco algum com o que pretendiam ser : análise política. Mas também porque
nenhum média jornalisticamente decente admitiria que um antigo dirigente
político, indesmentível e permanente militante partidário, pudesse ter a
pretensão de fazer análise política, género jornalístico que tem por autoria
politólogos ou jornalistas seniores altamente especializados.
Não
impede que, durante os quatro decénios de democracia, Rebelo de Sousa se tenha
feito pagar principescamente para marcar presença. Para se fazer ler. Para se
fazer ouvir. Para se fazer ver. Para fazer o seu “show”. Para, na altura que
viesse a achar mais apropriada, viesse a candidatar-se à Presidência da
República. Sem necessidade de fazer uma campanha de imagem dispendiosa, porque
a imagem já tinha sido feita e até lhe tinha sido sumptuosamente paga.
Rebelo
de Sousa conseguiu assim uma proeza bem superior à de Silvio Berlusconi. Porque
Berlusconi teve que esforçadamente construir pouco a pouco um império mediático,
antes de pretender ser chefe de partido político e primeiro ministro em Itália.
Rebelo de Sousa não construiu nada (à parte a sua imagem), pouco assumiu em
termos de responsabilidades políticas, pouco produziu em qualquer domínio de
importância e agora nem sequer é candidato a responsabilidades difíceis,
problemáticas e com duração incerta, mas apenas a uma função sobretudo de puro
decoro. E foi pago para isso, dizendo tudo e o contrário de tudo em matérias em
que muitas vezes nada conhecia, sem contraditor, em total impunidade política e
jornalística.
Mimar os jornalistas
Esta
impunidade foi fruto de um relacionamento cuidado com o meio jornalístico,
sendo Rebelo de Sousa uma fonte privilegiada “off the record” do que se passava
em meios de poder que frequentava e em que por vezes assumia funções. Propondo
exclusividades em troca de uma imagem positiva dele nos média assim favorecidos.
Inventando exclusividades quando se encontrava a seco (Paulo Portas que o diga).
Traindo uns e outros (Francisco Pinto Balsemão foi uma das vítimas [i]),
segundo as suas necessidades táticas e cataventistas do momento. Mimando os
jornalistas de modo a que toda e qualquer declaração sua fosse imediatamente
repercutida no média audiovisuais no próprio dia e na imprensa escrita logo no
dia seguinte, de preferência com títulos de primeira página : nenhum verdadeiro
analista político usufrui algum vez de tais benesses por parte dos média no
resto da Europa !…
Como
diriam os francófonos : durante mais de quarenta anos, jornalistas e média
portugueses serviram a sopa a Rebelo de Sousa. Há pois, ao bom povo português,
formado quotidianamente na cultura do futebol e da partidarice, que aceitá-lo,
caso venha a ser eleito. É verdade que o vivaço reguila e brincalhão “da Linha”
(companheiro de férias de Ricardo Salgado, no iate deste no Mediterrâneo ou na
propriedade do mesmo no Brasil, mas presidente também da monárquica Fundação da
Casa de Bragança !) será muito provavelmente menos cinzentão e mais hábil do
que o atual residente em Belém. Mas a sua eventual eleição deixará um trágico rasto
do funcionamento do jornalismo e dos média. E, por conseguinte, uma desoladora
imagem da pobre democracia portuguesa…
Professor emérito de Informação e
Comunicação da Université Libre de Bruxelles
[i] Caso Marcelo Rebelo de Sousa venha a ser
eleito presidente da República, será interessante ver se Francisco Pinto
Balsemão se manterá no Conselho de Estado como conselheiro do seu antigo
empregado (no Expresso), de quem não
se priva de dizer que “não é pessoa de confiança”. Tanto mais que Pinto
Balsemão sonhou ele mesmo a certa altura poder vir a ser candidato à
Presidência da República, fazendo uma declaração neste sentido numa entrevista
publicada pelo desaparecido diário A
Capital, de que era então proprietário.
Texto publicado no diário Público, Lisboa, 21 de janeiro de 2016, p. 47.