Um projeto que ocultava outro…
J.-M. Nobre-Correia *
Entre maio de 1988 e julho
de 1995, sob aparências de um jornal novo e de uma nova conceção do jornalismo,
O Independente constituiu de facto e
antes do mais uma máquina de guerra para elaborar uma política de direita
radical…
Desenganem-se os
que esperam encontrar neste livro uma abordagem histórica, económica e
sociológica de um jornal. De um semanário que fez data nos anais da imprensa
nacional durante dezoito anos, ou pelo menos durante parte deles. Um semanário
cuja ambição era vender “um exemplar mais” do que o Expresso, seu grande rival. Mas que nunca lá chegou e desapareceu
ingloriamente. Até porque O Independente
foi mais um instrumento de intervenção política e cultural do que um média com
uma marca forte em matéria de jornalismo no sentido próprio da palavra.
Nada ou quase nada
há de elementos fatuais no livro no que diz respeito à empresa editora do
jornal. Apenas uns vagos elementos sobre a preparação do seu lançamento. E mais
nada. Nada sobre o capital da empresa e as alterações em termos de acionistas.
Nada sobre a arquitetura da equipa de redação e as mudanças operadas ao longo
dos anos. Nada sobre tiragens, assinaturas e vendas em banca. Nada sobre o
“leitorado” em termos geográficos, de classes etárias, de níveis de estudos ou
de profissões. São estas aliás as ausências mais desoladoras.
Não impede que o
livro de Filipe Santos Costa e Liliana Valente tenha outras formidáveis
qualidades. Uma apresentação gráfica extremamente cuidada e agradável. Uma
admirável escrita límpida, de uma ligeireza perfeitamente aprazível. E uma
enorme quantidade de referências absolutamente minuciosas, a maior parte das
vezes raras em livros que têm jornalistas como autores.
Mas a qualidade
determinante deste livro é a de pôr em evidência diversas caraterísticas
essenciais de O Independente. De ter
sido desde a origem um projeto antes do mais político e cultural, impregnado de
uma ideologia snob, petulante, conservadora e mesmo em vários aspetos reacionária,
“normalizadora” de Salazar. Mas foi também uma máquina de guerra de um feroz
anticavaquismo de classe. E, de maneira mais geral, uma atroz “máquina de
triturar políticos”, como o explicita aliás o subtítulo do livro.
Durante anos, O Independente foi uma máquina semanal
de “exclusividades” que eram verdadeiras bombas-relógio. Exclusividades que
quase sempre tinham apenas como fonte uma única personalidade dos meios
políticos e preferencialmente governamentais. Personalidade cuidadosamente
mimada e devidamente posta em valor num jornal que lhe reconhecia admiráveis
méritos. Possa embora ela vir a cair nas profundas do inferno do jornal, quando
se tornava impossível continuar a protegê-la.
Claro está que
estas “exclusividades” raramente davam lugar a um trabalho de verificação, de
multiplicação das fontes, de cotejo dos elementos fatuais : os documentos
oficiais vindos diretamente do Conselho de ministros ou as informações
provenientes da Procuradoria, por exemplo, bastavam para que se pudesse passar
à ofensiva. E claro está também que as peças produzidas em torno destas “exclusividades”
eram escritas boa parte das vezes num tom em que a sobriedade e a distância
eram ignoradas, fazendo arregalar os olhos de espanto confrades europeus que tinham
porventura a oportunidade de ler o semanário lisboeta.
Aliás o interesse
principal do livro de Santos Costa e Valente é — para além de permitir rever
(nos dois sentidos da palavra) a história política contemporânea — o de
constituir uma brilhante ilustração das patologias do jornalismo em Portugal.
Com a sua falta de distância em relação aos assuntos tratados, a ausência de
serenidade na escrita, a atávica fulanização do tratamento, o insuportável
umbigo-centrismo dos cronistas e outros editorialistas.
Lido com um
indispensável segundo sentido, encontramos no livro de Santos Costa e Valente as
grandes características do jornalismo que impera neste país há pelos menos 40
anos. E de jornais em que a parte “tribuna” política ou cultural “engagée” é bem
mais importante do que a preocupação com os factos, a sobriedade da escrita, o
rigor da análise e um profundo respeito pelos mais elementares princípios da
deontologia profissional e da ética social. Tudo coisas que pouco interessavam
os seus dois primeiros diretores, mais vocacionados para instrumentalizar a
vida política, ser conselheiros de líderes políticos, redigir os discursos
destes, interferir na vida interna de partidos. Até ao momento em que, da
tribuna de papel impresso, o diretor dá o salto para tomar conta do CDS,
esperando fazê-lo evoluir para uma direita radical. Deixando lentamente
definhar uma criatura que fora bem mais político-cultural do que propriamente
jornalística…
Num formidável
prefácio ao livro, Vicente Jorge Silva diz o essencial sobre O Independente e os seus dois primeiros diretores
que “nunca se coibiram de disfarçar a sobranceria incontida dos seus egos”,
considerando que “representavam uma elite sofisticada e culta, que votava um
enojado desprezo à vulgaridade pequeno-burguesa e parola do Portugal
cavaquista”. Resta saber como puderam depois Aníbal Cavaco Silva e os seus próximos
conviver com aquele que foi o principal e mais duradoiro diretor do jornal,
Paulo Portas ?…
Filipe Santos Costa e Liliana Valente
O
INDEPENDENTE : A MÁQUINA DE TRITURAR POLÍTICOS
Matéria-Prima Edições, 340 pp, 19,80 euros
Texto publicado no quinzenário JL Jornal de Letras, Lisboa, 20 de janeiro de 2016, p. 32.