Promessas e incertezas
J.-M. Nobre-Correia
Política : A atual conjuntura europeia e internacional apresenta aspetos de que a
União Europeia poderia tirar proveito para se reforçar. Mas há outros aspetos
nesta conjuntura que assombram seriamente o horizonte…
A Europa (o continente europeu como a
União Europeia) vive atualmente uma fase da história decisiva. Depois do
referendo na Grã-Bretanha que decidiu da saída da União Europeia, outros países
poderiam ser levados a idênticas decisões. Sobretudo se a decisão dos eleitores
britânicos vier a ter consequências económicas notoriamente positivas.
Diga-se em abono da verdade que esta
redução do número de países membros teria até grandes probabilidades de
favorecer um sério reforço, uma real consolidação da União Europeia. Até porque
os últimos alargamentos foram feitos em função de considerações geopolíticas puramente
anti-russas e não termos socioculturais e históricos [1]…
As circunstâncias favoráveis
Mas há outras circunstâncias de natureza a
favorecer o reforço da União Europeia. Por um lado a grande ambição de Vladimir
Putin em alargar a área de influência da Rússia. Ambição cada vez mais
manifesta numa parte da Europa de Leste como no Próximo Oriente. Quando
historiadores e politólogos em voga nos tinham garantido que, depois do
desmoronamento da União Soviética, a Rússia passaria a ser uma modesta potência
de média importância.
A outra circunstância decorre da eleição
de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos e da sua afirmação-slogan
“America First”. O que, posto em relação com outras declarações suas, permite
antever um isolacionismo voluntário do país e uma menor implicação na vida
internacional. O que deveria também significar uma Otan-Nato menos
estado-unidense e menos guarda-chuva de proteção militar teórica dos europeus
perante a Rússia. Levando assim europeus e União Europeia em particular a terem
que assumir a própria autonomia política e económica em relação aos EUA, assim
como a própria política de defesa [2].
Um tal contexto resultante de circunstâncias
externas favoráveis à consolidação da União Europeia e da sua posição na plano
internacional pode no entanto ser afetado por circunstâncias internas de
carácter mais claramente político. Como sejam a laminagem a que se assiste há
anos, e cada vez mais evidente nestes últimos tempos, de boa parte das
formações políticas que tradicionalmente constituíam os pilares de sustentação
das sociedades democráticas europeias [3].
Desapareceu assim largamente a família democrata-cristã,
a liberal está manifestamente em crise aberta em diversos países, e a
social-democrata-socialista [4]
perdeu praticamente a sua ancoragem clara à esquerda [5].
Enquanto algumas das antigas micro-formações esquerdistas vão conseguindo
reagrupar-se em novas organizações de esquerda radical (em Portugal, na Grécia,
na Espanha e na Bélgica). E que, por seu lado, a extrema direita nacionalista,
xenófoba e até mesmo racista se afirma cada vez mais em muitos dos países para
além dos Pirenéus (na Hungria, na Polónia, na Áustria, na Suíça, em França, na
Dinamarca), atingindo resultados eleitorais por
vezes altíssimos (entre 21 e 65 %), pondo seriamente em questão o futuro
democrático pluralista da Europa [6].
Como chegámos porém a este ponto ? Deixemos
de parte países marcados mais por uma cultura de política autoritária do que pela
democracia pluralista (Polónia e Hungria). Ou que recusaram sempre fazer o
balanço das suas próprias responsabilidades durante a Segunda Guerra Mundial
(como a Áustria). Ou cujos pilares de sustentação tradicional da vida pública
desapareceram há muito da cena pública (como a Itália, com a caída em total
descrédito da Democracia Cristão e do Partido Socialista Italiano). Mas
repare-se nas movimentações claramente racistas nos Países Baixos, na
Grã-Bretanha e na Alemanha, como aliás em França e na Bélgica…
A impunidade dos políticos
O que se passa atualmente nestes dois
últimos países é tragicamente significativo da irresponsabilidade dos políticos
e dos aparelhos políticos das nossas democracias. Da maneira como, eleitos como
“representantes do povo”, autarcas, parlamentares ou ministros passam muitas
vezes a considerar-se como intocáveis. E começam impunemente a apropriar-se dos
bens públicos e a abusar deles mais do que fariam se dos seus próprios bens
privados se tratasse.
Durante longos anos, o candidato da
direita à presidência da República em França — antigo deputado, senador,
ministro e primeiro ministro — utilizou dinheiros públicos para remunerar ultra-generosamente
a sua esposa e dois dos seus filhos …a não fazerem nada ou quase. Mas também,
como primeiro ministro, propôs a atribuição de uma condecoração prestigiosa a
um riquíssimo financeiro que pagou 100 mil euros por duas notas de leitura
assinadas pela mesma esposa numa revista de que é proprietário e que deveriam
normalmente ser remuneradas a 150 euros cada uma…
Mas foi também durante longos anos que
mandatários valões de todos os “partidos tradicionais” belgas francófonos
tiveram assento no conselho de administração de um cooperativa intercomunal [7]
dirigida por um autarca socialista. Intercomunal que praticava preços bastante
elevados nas suas atividades de eletricidade, telecomunicações e redes de cabo,
todos os administradores recebendo remunerações altíssimas, mesmo quando nem
sequer participavam nas reuniões do conselho de administração ! Em troca, é
claro, de um absoluto silêncio sobre esta escroqueria institucionalizada…
Admiremo-nos depois que políticos e
partidos políticos tenham consideravelmente perdido credibilidade ao longo dos
anos. Que os cidadãos tenham deixado de militar ou mesmo mais simplesmente de
aderir a esses partidos por terem simplesmente confiança nos seus programas (e
não como cálculo oportunista para uma rápida ascensão social). Que tenham, o que
é ainda mais trágico, deixado de votar (as taxas de abstenção sendo cada vez
mais elevadas), considerando que os partidos são antes do mais máquinas de
exercício do poder em benefício próprio. E que boa parte dos políticos se
ocupam sobretudo deles próprios, do seu bem estar social e material, só
pensando nos cidadãos em período de eleições, quando precisam de se fazer reeleger,
fazendo da política uma profissão (se possível permanente) que lhes permite
viver fora das contingências normais da vida quotidiana dos cidadãos.
As próximas eleições nos Países Baixos
(legislativas, em março), em França (presidenciais, em abril-maio, e
legislativas, em junho) e na Alemanha (legislativas, em setembro) poderão pois
transformar-se numa sucessão de terramotos que não poderão permitir à União
Europeia tirar partido de uma conjuntura internacional com aspectos favoráveis.
Mas que poderão também empurrar a União Europeia para o desmoronamento e, pior
do que isso, para autoritarismos de que dificilmente podemos antever com
precisão os sombrios contornos políticos, sociais e culturais…
[1] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia,
« Algumas lições pós-eleitorais », in A Vaca Voadora, 9 de novembro de 2016 e in Notas de Circunstância 2, 10 de novembro de 2016.
[2] Dois aspetos que têm escapado aos
“comentadores” nacionais : com a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, a
França passa a ser o único membro a ter assento permanente no Conselho de
Segurança das Nações Unidas e o único a contar em termos militares, devido
nomeadamente à sua força nuclear, para além de ser, depois dos Estados Unidos e
da Rússia, o país com a maior rede de implantação diplomática no mundo.
[3] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia,
« O deslize das placas tectónicas… », in Notas de Circunstância 2, 6 de fevereiro de 2015.
[4] Social-democrata no sentido europeu
tradicional do termo e não no sentido absurdo que o antigo Partido Popular
Democrático, claramente inserido na família da direita liberal, lhe fez tomar em
Portugal.
[5] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia,
« Outras facetas de uma crise », in Notas de Circunstância 2, 5 de julho de 2015.
[6] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia,
« Ainda a propósito das europeias… », in Notas de Circunstância 2, 6 de junho de 2014.
[7] Em direito belga, uma intercomunal é uma
empresa pública criada por diversos municípios (comunas, na terminologia belga)
com o fim de assumir missões de serviço público.
Texto publicado no blogue A Vaca Voadora, 7 de fevereiro de 2017, com dois ligeiros acrescentos.
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