A mutação que se anuncia

J.-M. Nobre-Correia
Média / Política : O arrastar da “crise” dos anos 1970 e o seu aprofundamento em 2007-08 levam a esquerda europeia a entrar ela mesma em crise e a procurar agora redefinir os seus posicionamentos sociais, culturais e políticos…

Os média que temos andam geralmente distraídos em relação ao que se passa na Europa. Isto é : no espaço geográfico que é desde sempre o nosso. Mas também na União Europeia (para além das versões oficiais de Bruxelas ou de Lisboa). Isto é : no espaço político-económico de que somos membros há três decénios. E da atualidade na Europa latina. Isto é : do espaço cultural de que somos parte integrante há longos séculos.
A explicação para tais distrações : redações diminutas, com pouca ou nenhuma gente especializada nestas matérias e raros correspondentes realmente competentes. Pelo que as ditas redações recorrem sobretudo às agências de informação mundiais que são antes do mais estado-unidenses (por vezes com rótulo britânico) ou à naturalmente insuficiente agência nacional. Na melhor das hipóteses consultam também a edição gratuita em linha de The Guardian e mais raramente (segundo os gostos) El País ou El Mundo, partindo da hipótese totalmente errada de que “toda a gente” nas redações fala inglês e castelhano !…
Ora, nos países mais próximos geográfica e culturalmente assiste-se a prenúncios de mutações políticas importantes no campo da esquerda. Mutações de certo modo históricas, até certo ponto comparáveis às dos anos 1920. Como em Espanha, onde o arrastar da crise de indefinição sociopolítica do Partido Socialista Obrero Español (PSOE) leva leva o antigo secretário geral, Pedro Sánchez, a entrar em campanha junto dos militantes para procurar voltar à liderança do partido. Mas também com a crise adiada de Podemos a que o recente congresso não conseguiu pôr termo : aliado possível do PSOE, como quer a corrente minoritária do número 2, Iñigo Errejón, ou ambicionando afirmar-se como a grande formação de esquerda perante um PSOE em vias de diluição eleitoral, como pretende a corrente maioritária do número 1, Pablo Iglesias ?
Na Itália, o Partito Democratico (PD), resultado sobretudo da confluência das correntes de esquerda da antiga Democrazia Cristiana e as de direita do antigo Partito Comunista Italiano, entrou em crise depois do fracasso do referendo sobre a reforma constitucional de dezembro e a sequente demissão de Matteo Renzi das funções de primeiro ministro e de secretário do PD. O que levou a um afastamento voluntário da ala esquerda constituída precisamente ontem em Movimento Democratico e Progressista. Conseguirá este reencontrar as formações que não tinham aderido à fundação do PD e as que fizeram sucessivamente cisão deste partido, ultrapassar a tradicional fragmentação da esquerda radical italiana e constituir uma nova formação de peso na cena parlamentar do país ?
Em previsão das eleições presidenciais e legislativas em França, nos termos normais da “mandatura” e da legislatura, dois “grandes” candidatos de esquerda vão normalmente afrontar-se [1]. Um, Jean-Luc Mélenchon, antigo ministro socialista que deixou o PS em 2008 e se autoproclamou candidato em julho de 2015, intenção que confirmou em fevereiro de 2016. O outro, Benoît Hamon, antigo ministro socialista também, crítico em relação à ação governamental do seu partido, candidato vencedor das tardias eleições primárias da esquerda (socialistas, “radicais de esquerda” [2] e ecologistas), tardias porque o presidente François Hollande só em dezembro passado resolveu declarar que não seria de novo candidato.
Com diferenças de calendário em relação às próximas eleições legislativas (que só no caso da França estão fixadas e que, neste caso, serão precedidas pelas presidenciais) o objetivo dos que se afrontam atualmente e disputam as lideranças é evidente : reconfigurar as organizações políticas da esquerda e os posicionamentos sociopolíticos destas. Com o aparecimento de forças sociais-liberais de centro esquerda (lideradas pela atual direção do PSOE, pela corrente do ex-primeiro ministro francês Manuel Valls e pela do ex-primeiro ministro Matteo Renzi) e outras socialistas de esquerda radical (lideradas por Podemos em Espanha, Benoît Hamon ou Jean-Luc Mélenchon em França e pela nova formação criada pelos dissidentes do PD na Itália).
Observam-se também movimentações neste sentido noutros países da União Europa, embora as clivagens anunciadas não venham forçosamente a tomar configurações idênticas nem dimensões comparáveis. Em todo o caso, em todos eles se observa com manifesto interesse pela atual experiência portuguesa de governo. É verdade que já em abril de 1974, Portugal precedeu a saída da Grécia e de Espanha de sistemas ditatoriais e a entrada destes dois países em democracia ; a dinâmica sociocultural dos anos 1974-75 fez então sonhar esquerda radical, esquerdistas e muitos utopistas um pouco por todo o lado ; enquanto que os sucessos da experiência parlamentar e governamental atual fazem compreender a diversas correntes de esquerda que afinal até há provavelmente saídas possíveis para a crise em que mergulha a Europa há uma quarentena de anos e sobretudo desde 2007-08…
O futuro dirá se, depois da reconfiguração dos anos 1920 do chamado “movimento operário” em torno de socialistas e de comunistas, os prenúncios atuais de reconfiguração da esquerda anunciam novas formações. Formações que terão necessariamente que ser mais adequadas a estes primórdios de século XXI, adotando posicionamentos sociais, culturais e políticos inovadores capazes de concretizar mais, mais e melhor a noção elementar de justiça social…



[1] …para além dos habituais « pequenos » candidatos esquerdistas que atingem raramente 1 % dos votos !
[2] “Radicais de esquerda” significa aqui militantes e simpatizantes do Parti Radical de Gauche, partido nascido em 1972 da cisão do velho Parti Radical fundado em 1901. A sua presidente, Sylvia Pinel, foi candidata a esta eleições primárias.


Texto publicado no blogue A Vaca Voadora, 1 de março de 2017.

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