A nova revolução francesa ?
J.-M. Nobre-Correia
Política : Os acontecimentos que tiveram lugar a partir de 1789 provocaram uma rotura
fundamental na História do país como do resto da Europa. As eleições que se
aproximam poderão bem provocar outra viragem decisiva…
Falar hoje de política francesa supõe um
indispensável preâmbulo : tudo pode mudar ainda de maneira radical em relação
ao que parece poder diagnosticar-se seis semanas antes da primeira volta das
eleições presidenciais. Que mais não seja porque a Justiça tem em curso
procedimentos em relação a pelo menos dois candidatos. Mas também porque os
conflitos internos no seio das duas principais formações políticas estão longe
de estar apaziguados…
De qualquer modo, as próximas eleições
presidenciais, seguidas de eleições legislativas, poderão bem fazer desmoronar
o sistema político francês, não deixando pedra sobre pedra do que foi a V.a
República erigida pelo general Charles de Gaulle. Até porque a França vive
desde há meses uma série de acontecimentos inéditos na sua história recente.
Com o presidente da República sortant
que renuncia a candidatar-se a novo mandato. E com as duas principais formações
políticas (o Parti Socialiste [PS] e Les Républicains [LR] [1]) organizando eleições primárias de onde
saem vencedores inesperados, eliminando os “prometidos” que média e sondagens
iam anunciando…
A recomposição da vida democrática
Estas mesmas sondagens, cuja fiabilidade
tem sido posta em causa, dizem agora que três candidatos se disputarão de facto
a primeira volta das presidenciais : o centrista Emmanuel Macron, a extremista
de direita Marine Le Pen e o conservador François Fillon. Ficam muito
provavelmente excluídos da segunda volta todos os outros, nomeadamente o
socialista Benoît Hamon, vencedor das primárias da esquerda alargada [2], e o autoproclamado candidato de esquerda
radical Jean-Luc Mélenchon.
A concretizarem-se tais previsões, isso
significaria que a esquerda, e mais particularmente o PS, pela segunda vez na
história da V.a República não estaria presente na segunda volta das
presidenciais [3]. A direita do PS tudo tem feito para que
assim seja, das críticas públicas ao posicionamento de Hamon às adesões de
grandes figuras do partido à candidatura do centrista Macron. Enquanto que o
esquerdista Mélenchon nada mais deseja do que a implosão do seu antigo partido,
esperando assim construir uma nova formação “autenticamente de esquerda”, com
franjas de esquerda do PS e o que resta do Parti Communiste Français, assim
como com algumas das micro-formações da esquerda radical e do esquerdismo.
O reposicionamento do PS à esquerda é
também a ambição de Hamon. Mas a batalha será rude, pois não interessa à
direita social-liberal entregar os destinos do partido a quem foi notoriamente
crítico em relação à ação dos governos presididos por François Hollande nos últimos
anos. E a manifesta incapacidade e má vontade da direita do partido em afirmar
uma união de fachada em relação ao candidato da esquerda traz à luz do dia a
violência interna que se declarará depois das eleições. Logo por ocasião da
elaboração das listas para as legislativas de 11 junho, mais ainda quando for
preciso fazer alianças para enfrentar a segunda volta de 18 e sobretudo depois
do provável resultado insatisfatório destas. Tanto mais que Manuel Valls,
ex-primeiro ministro que considera que as “duas esquerdas” são
“irreconciliáveis”, procurará reposicionar o PS no social-liberalismo com que
ele próprio se identifica.
Les Républicains estarão confrontados a
uma situação relativamente idêntica caso Fillon não consiga vir a ser um dos
dois candidatos que se afrontarão na segunda volta das presidenciais. Muito
embora as diferentes correntes do partido estejam a dar uma imagem pública de
união, depois de uma fase em que as hostilidades em relação ao candidato do
partido vieram abertamente a público, por vezes seguidas de afastamentos da sua
campanha. Porém, depois das duas eleições, e até talvez já antes das
legislativas, a confrontação entre Nicolas Sarkozy e Alain Juppé parece
inevitável.
A crise anunciada da V.a República
A recomposição da paisagem partidária
francesa parece pois estar inscrita num horizonte imediato. A acreditar na
fiabilidade das sondagens, Emmanuel Macron tem grandes probabilidades de vir a
ser o próximo presidente da República, pois é dificilmente imaginável que a
“disciplina republicana” não leve na segunda volta os eleitores de esquerda a
escolhê-lo na confrontação com Marine Le Pen ou mesmo com François Fillon. Mas
a questão que se põe imediatamente é a de saber como é que Macron, personagem
sem filiação partidária e sem partido, conseguirá constituir uma formação
política capaz de se impor no parlamento e de apoiar solidamente a ação
governamental do novo presidente. E a questão seguinte será a de saber que
correntes irão reforçar o novo partido de Macron após as presidenciais, que
partidos se aliarão a ele antes da segunda volta das legislativas e o apoiarão
depois de facto na vida parlamentar.
Atualmente, Macron conta com apoios vindos
da direita (como o ex-fascista reconvertido em liberal Alain Madelin), do
centro (nomeadamente o democrata-cristão François Bayrou que foi três vezes
candidato à presidência da República) ou da esquerda (vários expoentes
socialistas como comunistas, nomeadamente o ex-secretário geral do PCF Robert
Hue). Alain Juppé e Manuel Valls juntar-se-ão também a ele na segunda volta das
presidenciais ou na segunda volta das legislativas ?
Por outro lado, caso venha a reforçar a
sua posição no seio do LR, Sarkozy conseguirá atrair e absorver parte do Front
National de Marine Le Pen ? O FN é antes do mais uma empresa de caráter
familiar onde pai (Jean-Marie), filha (Marine) e neta (Marion) controlam as
estruturas e os bens do partido. Mandatários haverá que se cansarão de
continuar eternamente marginalizados, longe do Poder real : um LR reposicionado
ainda mais à direita por Sarkozy tentá-los-á ?
Após as eleições presidenciais e as
eleições legislativas há grandes probabilidades que o edifício construído antes
do mais pelo general Charles de Gaulle e depois, de certo modo, por François
Mitterrand venha a desabar. As duas formações políticas essenciais que foram os
pilares-mestres da V.a República correm em todo o caso um sério risco de se
desmoronarem e desaparecerem da cena política.
A aniquilação de formações tradicionais
sustentáculos do sistema democrático já ocorreu na Itália com a Democrazia
Cristiana e o Partito Comunista Italiano, e até de certo modo o Partito
Socialista Italiano. Mas a recomposição em França não deixaria de ter
repercussões ideológicas e estruturais no resto da Europa, até pelo peso político
que o país tem no seio da União Europa, como pelo peso cultural que é o seu no
resto da Europa, digam o que disserem por aí os amadores de simplismos e de
verdades prontas-a-proclamar…
[1] Les Républicains é o atual nome do
chamado « partido gaullista ». Partido liberal-conservador que
sucedeu à UMP (2002-2015), ao RPR (1976-2002), à UDR (1967-1976) e à UNR
(1958-1967) fundada por ocasião da chegada de Charles de Gaulle au poder.
[2] V. a este propósito J.-M. Nobre-Correia,
« A mutação que se anuncia », in Notas
de Circunstância 2, 2 de março de 2017.
[3] Em 2002, o
socialista Lionel Jospin foi eliminado logo na primeira volta, tendo-se
confrontado na segunda volta o gaullista Jacques Chirac e o presidente do FN,
Jean-Marie Le Pen. Formalmente, o (novo) Parti Socialiste francês foi
(re)fundado em 1971. Mas antes, em 1969, a esquerda tinha já estado ausente da
segunda volta das eleições presidenciais de 1969.
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