O argueiro e a trave
J.-M. Nobre-Correia
Média : O telejornal da RTP 1 é um
reflexo de vaidades num oceano de inconsistência e de irresponsabilidade…
Anda por aí uma polémica daquelas de que o
meio mediático português tem o segredo. Ou melhor : de que só o microcosmos
jornalístico lisboeta sabe confeccionar a receita. E isto porque, como noutros
países, os jornalistas estimam ter o direito (e devem de facto tê-lo) de se interrogarem
sobre tudo e todos, e, se necessário, criticarem as opiniões de uns ou os
feitos de outros, mas não suportam que alguém possa também fazê-lo sobre a
maneira como praticam o ofício.
Esta rejeição é tanto mais inflexível
quanto a “classe” vive como num bocal, conhecendo-se uns aos outros,
frequentando os mesmos lugares e manifestações de toda a ordem, quando não conviveram
nas mesmas escolas, em próximos círculos de família ou de amigos, e até tiveram
os/as mesmos/as namorados/as. O que os torna ainda mais susceptíveis em relação
às críticas vindas do exterior, considerando-as traição ou arrivismo quando provêm
de antigos jornalistas, ignorância ou pedantismo quando oriundas de outros
meios profissionais.
Que os telejornais da RTP 1 sejam quase sempre de uma enorme indigência, nas temáticas
escolhidas, na hierarquização das sequências e nos tratamentos adoptados, são
manifestamente considerações proibidas de fazer. Como não é permitido notar que
os principais apresentadores estão cheios de tiques faciais, gestuais e de
elocução, o mais inacreditável sendo o piscar de olho final de um deles. Ou que
é perfeitamente insuportável a preferência doentia dada aos faits divers (brutais, sangrentos, desgarrados,
gritados e carpidos se possível) e à futebolite aguda (a não confundir com o
desporto em geral).
Mas até há outras razões para crítica. Que
em vez de explicações didácticas de temas obscuros, os jornalistas preferem
mostrar-se a si próprios em locais que nem sempre têm a ver com o assunto,
juntando muitas vezes imagens passe-partout
e não-pertinentes. Que os comentários interpretativos são raramente assumidos
por gente competente da redação, mas sim por “comentadores” exteriores
todo-o-terreno, palradores raramente capazes de síntese. Que os “directos” são uma
assoladora praga, quando na grande maioria dos casos a actualidade não justifica
estas intervenções de pseudo-repórteres (que se abstêm aliás de proceder a
etapas essenciais : filmar acontecimentos, seleccionar passagens
significativas, montá-las e gravar o som que as deve acompanhar).
Que são abusados por políticos,
sindicalistas, dirigentes desportivos e demais actores sociais que, como por
acaso, têm declarações a fazer à hora do telejornal, impondo “directos”
desprovidos da mais elementar “edição” jornalística, assumindo o “repórter” de
serviço a função de mero canalizador. Que haja jornalistas que andam diariamente
atrás dos líderes partidários e acham que devem absolutamente retransmitir
extractos das declarações deles, mesmo quando são totalmente desprovidas de
interesse.
Que a maior parte das vezes os
correspondentes no estrangeiro se abstêm de fazer a mais elementar reportagem
(ou então esta é-lhes fornecida por instituições locais), tendo sobretudo a
preocupação de se mostrarem a si próprios e dizendo-nos coisas para as quais
não era preciso terem saído de Lisboa para poderem dizê-las até de maneira mais
aprofundada e construída. Que a investigação, o dossiê e a grande reportagem
são extremamente raros, porque isso supõe trabalho em equipa e, claro está,
meios financeiros, técnicos e humanos.
Espantemo-nos depois que um fait divers em nada significativo da
evolução da sociedade e do estado da moral social, muito menos sem incidência
na vida quotidiana dos cidadãos, redunde de facto numa lamentável cena de
pancadaria generalizada. Tema e cena certamente apreciada pela direcção da
informação da televisão pública (como aliás pelas suas antecessoras) que lhe consagra
1 minuto e 38 segundos, depois de outros três temas de natureza criminal [*]. Peça que vem após duas outras sobre a
CGD e o Montepio (a primeira das quais tecnicamente falhada), mas antes de
temas de manifesta somenos importância como o surto de hepatite A, as
desigualdades salariais, o aumento do preço das casas ou as eleições
autárquicas. Cada um destes merece aliás uma só sequência, quando o
Benfica-Porto de dois dias depois tem direito a quatro e claro, antes disso, a um
anúncio a meio do telejornal.
Como a justificar uma popularunchização particularmente
medíocre, vêm jornalistas da RTP em
petição exigir a demissão de quem ousou criticar o tratamento de uma “peça” do
jornal. Quando, se petição deveria haver, seria para reivindicar do conselho de
administração a nomeação de uma direcção da informação e de chefes de serviço na
redação capazes de conceber e construir diariamente um telejornal digno de uma
televisão pública. Mas isso…
2 de Abril de 2017.
Nota
final em forma de interrogação : que capacidade de tolerância e sentido do
debate, da confrontação de ideias, poderia revelar a “classe” jornalística dos
média ditos “nacionais” perante este texto ?…
[*] Telejornal das 20h00 de quinta-feira 30 de março na RTP 1.
Texto publicado no blogue A Vaca Voadora, 11 de abril de 2017.
Tendo a RTP quem tem na Direção de Informação qual a surpresa?...
ResponderEliminarEstou a ver que não ando a perder nada...
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