Coisas verdadeiramente de pasmar…

J.-M. Nobre-Correia
Média : Folhear e ler jornais portugueses é abrir portas para a descoberta de um mundo de surpresas e emoções, tão grande é a genuinidade do jornalismo nacional ! E isso explica em grande parte a gravíssima crise da imprensa…
No contexto europeu, a imprensa portuguesa constitui verdadeiramente um caso à parte. Não apenas porque a escassez de jornais nacionais é evidente (e os que pretendem sê-lo são antes do mais regionais, em termos editoriais como em termos de “leitorado”). Mas também porque as difusões são inacreditavelmente baixas (ao nível de um Luxemburgo, país com uma demografia 20 vezes inferior e um pluralismo linguístico que limita impreterivelmente as audiências). Mas ainda porque há práticas jornalísticas correntes nas suas páginas que são inconcebíveis para além das fronteiras nacionais…
Sábado passado, o Expresso anunciava na sua primeira página uma “reportagem” e nada mais nada menos do que seis autores de “opinião” sobre a situação política em França. De facto a “reportagem” redundava em três textos de correspondência, género cujas características são bastante diferentes, que mais não seja porque a reportagem supõe que o jornalista vá para o terreno. Que depare com situações e pessoas diferentes e venha a confrontar-se com diversos atores da vida social e (neste caso) política. O que dará lugar a descrições contrastadas, assim como a testemunhos e opiniões que também o são.
Tudo é opinião e todos escrevem opinião
Por outro lado as seis “opiniões” eram na realidade sete, tendo o cronista semanal de política internacional sido esquecido ! E neste caso põem-se três problemas. O primeiro é aquele que consiste, em Portugal, em dar o título de “opinião” ao que deveria dizer respeito à análise ou à crónica, quando os autores fazem parte da redação ou são colaboradores exteriores permanentes (e deveriam respeitar então os princípios de base destes dois géneros jornalísticos). Quando a opinião deveria ser reservada a colaboradores exteriores pontuais em rubrica eventualmente anunciada como tribuna.
O segundo problema é o que decorre do facto de uma tal proliferação de peças de opinião da parte de jornalistas ou colaboradores permanentes. Pela simples razão que a função de uma reunião de redação é precisamente a de estabelecer e coordenar o conteúdo de um jornal e designar nomeadamente a pessoa (ou as pessoas) que (em conjunto) terá(ão) que tratar um tema preciso.
Um último ponto levanta igualmente problema : nos jornais de referência europeus, um jornalista ou colaborador permanente não é um todo-o-terreno em condições de escrever sobre todo e qualquer assunto. Neles, é um especialista da área que virá a assumir a “peça”. O que explica aliás que os editoriais propriamente ditos sejam na grande maioria dos casos escritos pelo(s) especialista(s) da redação, sendo o texto final (anónimo) revisto pelo diretor como primeiro responsável pelas posições assumidas pelo jornal.
Ora, no caso evocado, ter-se-á a pretensão de afirmar que há de facto sete especialistas da situação política francesa na redação do semanário ? Basta ler os textos para ver que não é o caso… É certo que, dada a importância europeia das eleições presidenciais (e das próximas eleições legislativas) francesas, poder-se-ia conceber uma pequena multiplicidade de análises específicas : política interior, política europeia e internacional, economia, por exemplo. Mas não foi manifestamente isso que aconteceu…
Mas os jornais portuguesas destes dias reservam outras surpresas. Como por exemplo, no Diário de Notícias de terça-feira, a entrevista da realizadora de um documentário pela sua prima jornalista ! Coisa nunca vista em mais de cinquenta anos de frequentação diária da imprensa europeia… Com uma exceção, é verdade : quando, no número de 25 de abri de 2014 do mesmo Diário de Notícias, o líder de uma organização ecologista entrevistava um cronista permanente do jornal, entrevistador e entrevistado sendo primos, embora isso não fosse dito nem transparecesse nos nomes de família conhecidos publicamente, ao contrário do que acontece no caso desta semana.
Regras elementares muito esquecidas
Ora há regras elementares a respeitar em matéria de entrevista. Uma delas, essencial, é a do conhecimento prévio pelo jornalista da matéria que vai abordar e da personalidade do entrevistado. Uma segunda exigência elementar é a da indispensável distância entre os dois, entrevistador e entrevistado, distância mais ou menos sensível na escolha dos temas e na formulação das perguntas. Exigência “esquecida” desta vez pela direção do diário e pela jornalista, escrevendo esta aliás logo no início do texto : “Fica esclarecido : Susana e eu somos primas — os nossos bisavôs eram irmãos. Por isso nos tratamos por tu” !
Esta forma de tratamento constitui precisamente outra anomalia, perfeitamente compreensível nas relações sociais entre primas, totalmente inadmissível nas relações de um(a) jornalista com o seu (sua) entrevistado(a). Princípio de base demasiado “esquecido”, é verdade, em boa parte do jornalismo nacional-porreirista praticado neste país, quando o tratamento por tu exclui inevitavelmente o leitor, ouvinte ou espectador da intimidade de que entrevistador e entrevistado nos dão parte.
Última nota da semana : faleceu na terça-feira um vulto do jornalismo e da literatura portugueses. Um arredamento de Portugal durante mais de 45 anos, torna impossível que se possa fazer uma apreciação justa das qualidades profissionais do falecido. Em raríssimas crónicas lidas, fulanização e a compinchisse eram por demais evidentes. E a crónica escrita por ocasião da saída do Diário de Notícias, os grandes elogios sobre a antigo diretor do jornal e as duras críticas ao novo diretor não faziam claramente parte do que melhor se escreve em matéria de crónica jornalística. Consideração que fica aqui, contrariando aquilo que António Paulouro aconselhava ao redator-estagiário : quando alguém morre, só se podem escrever apreciações positivas sobre o falecido. Declaração de princípio formulada de facto em termos algo mais agrestes !…

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