Breves notas de perplexidade…

J.-M. Nobre-Correia
Estas duas últimas semanas foram férteis em acontecimentos inquietantes sobre o nosso Estado de direito e a nossa Democracia …
Os acontecimentos das últimas duas semanas nos meios das Forças Armadas e da Justiça deixam um muito desagradável sentimento de que estas duas instituições vivem verdadeiramente em roda livre. À margem do Estado de direito e da Democracia. Sem se preocuparem muito nem com aquele nem com esta. E sem que os supostos autores dos atentados a um e a outra sejam imediatamente suspensos, postos fora do ativo, enquanto se desenrolam os devidos processos de instrução.
Este sentimento em relação às Forças Armadas e à Justiça é extensivo às chamadas forças da ordem, que são aliás teoricamente um elo de ligação entre aquelas e esta. Mas que se ilustraram estes últimos dias com comportamentos absolutamente inaceitáveis. Quer no que diz respeito à publicação de fotos intoleráveis. Quer no que se refere à recente manifestação em frente da Assembleia da República.
Num país de velha democracia como a Bélgica, por exemplo, toda e qualquer manifestação é pura e simplesmente proibida num perímetro bastante alargado em torno do Câmara dos Representantes e do Senado. Em Portugal, e pela segunda vez, as forças policiais tentaram assaltar a Assembleia da República. Sem que se proceda depois à devida investigação para que os líderes de tal inqualificável iniciativa possam ser judicialmente expulsos da administração pública.
As competências e as companhias
Numa relação indireta com o tema das Forças Armadas, põe-se o caso do ex-ministro da Defesa. E a questão que se põe é a de saber se, de maneira geral, é politicamente são nomear alguém para altas funções, quando essa pessoa manifestamente não dispõe das competências indispensáveis para assumi-las ? Professor de Direito internacional, o ministro demissionário foi estranhamente antes presidente de uma instituição reguladora dos média (a ERC) e mais recentemente ministro da Defesa. E neste último caso, era manifestamente imaginável, concebível, que a engrenagem das Forças Armadas, com os seus ritos singulares, o seu espírito de corpo e até mesmo de casta, o tragaria se necessário fosse na devida altura.
Reparo anexo : não impede que se tenha nomeado há menos de um ano um novo presidente da ERC sem que o novo titular tenha manifestado anteriormente a menor competência em matéria de média, de informação e de programação. Diz mesmo quem sabe que a razão que o levou a assumir tal cargo foi a de prolongar assim a data limite da sua reforma ! E é isto que de certo modo explica a quase inexistência de intervenção da ERC na por vezes calamitosa atualidade dos média em Portugal…
Noutra matéria totalmente diferente, a coordenadora nacional do Bloco de Esquerda, veio no Públicocom um texto assinado por ela e mais três líderes partidários. O ilustre desconhecido de uma De Rød-Grønne dinamarquesa não menos desconhecida por estas bandas extremo ocidentais da Europa. O controverso líder do não menos controverso Podemos espanhol. E o insuportável líder de La France Insoumise que, na sua verborreia ultra vulgar, se preocupa antes do mais em destruir o que resta da esquerda em França e do que historicamente constituía o substrato comum às formações de esquerda, um líder que aliás se encontra atualmente a braços com a justiça. A coordenadora nacional faria bem em escolher melhor as suas companhias a nível europeu e não esquecer o célebre “diz-me com quem andas”…
As derrapagens da inconsistência
Temos por fim um ex-presidente da República que, uma vez mais, vem a público com um livro em que faz apreciações de caráter de personalidades públicas com quem privou nas suas funções. Mas onde faz também “revelações” de conversas que institucionalmente, como chefe de Estado, teve com estas mesmas pessoas.
Numa velha democracia como a Bélgica, o rei recebe semanalmente o primeiro ministro, como recebe muitas outras personalidades da vida social, económica, cultural… Chama-se à conversa que então tem lugar “um colóquio singular”. E ninguém imagina vir cá para fora dizer em que consistiu a conversa. Como é evidente que o chefe do Estado nunca dará parte destas mesmas conversas.
Em vinte anos de poder, o precedente presidente da República nunca percebeu bem quais eram os seus deveres de Estado. E, é claro, nunca soube afirmar-se como homem de Estado. Não há pois que admirar que ele venha agora uma vez e outra a meter a pata na poça. Interroguemo-nos antes sobre as caraterísticas socioculturais de um povo que o elegeu tantos anos a fio…
No contexto europeu, os países que funcionam incontestavelmente melhor são aqueles onde as noções de Estado de direito e de Democracia estão solidamente enraizadas no espírito dos seus habitantes, por vezes há centenas de anos. Mas isso não é razão para desesperarmos de um Portugal em que os sintomas de disfuncionamento se vão repetidamente arrastando. Há porém que legislar serena e ponderadamente, de modo a reforçar solidamente os mecanismos de proteção do bom funcionamento do Estado de direito e da Democracia…

Comentários

  1. Compreendo a perplexidade pelos casos mencionados e partilho da inquietação provocados pelos mesmos. A bagunça que persiste nas "forças da ordem"o caso de Tancos,as escolhas muitas vezes precipitadas ou de favor em cargos públicos, a cumplicidade de um partido que até apoia o governo,com grupos pouco recomendáveis e, cereja em cima do bolo, um ex Presidente da República Portuguesa que não resiste a manifestações atávicas da nacional cusquice,só podem causar desânimo pelo estado da nossa Democracia. Que só tem quarenta e quatro anos e isso desculpa ,também concordo, esta leva de acontecimentos tão pouco dignificantes.

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  2. Pois é o que temos. É pouco eu sei e o que é estranho é que a geração de politicos e intelectuais dos anos da resistência e que ainda viram o 25 de abril tinham uma formação democrática
    como moral bem superior.

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