Uma obsessiva omnipresença

J.-M. Nobre-Correia
No pós-25 de Abril, o atual chefe de Estado concebeu informação em proveito próprio que em nada dignifica o jornalismo…
É evidente que, depois da manifesta falta de dimensão de homem de Estado do seu predecessor, o novo titular da função teria um acolhimento positivo. E como o novo eleito é um personagem caloroso e sorridente, quando o outro era cinzentonamente crispado, grande parte dos cidadãos acolheu-o naturalmente com curiosidade, simpatia e até entusiasmo.
No entanto, é notório que o atual presidente da República foi lentamente alargando o espaço da sua intervenção pública. Ultrapassando cada vez mais os limites da função e tomando repetidamente iniciativas que, nos termos da Constituição, não são da sua competência. Abuso que só a fragilidade parlamentar congénita do presente governo permite compreender que não suscite confrontações graves e seja tolerado.
Mas há um domínio em que a conceção da presidência pelo atual locatário de Belém é absolutamente assoladora: a que o leva a procurar estar quotidianamente presente nos média. E de preferência a propósito de temáticas que ele próprio escolhe e impõe aos jornalistas. De modo a que, os média e sobretudo as televisões, sejam levados a tratar estas temáticas (uma, duas, três, quatro…) em diferentes sequências das edições diárias de informação.
Visto de fora, é por demais evidente que as “expedições” do chefe de Estado perante os jornalistas, fotógrafos e demais operadores de som e de imagem são cuidadosamente anunciadas pelos serviços da Presidência. De modo a que a coorte dos profissionais dos média possa seguir fielmente, “por montes e vales”, os passos, gestos e declarações do presidente durante o tempo que lhe aprouver e for necessário.
Como a mobilização dos média é grande em termos de profissionais, de tempo e por vezes de deslocações, e, por conseguinte, de custos, a lógica habitual das redações é procurar rentabilizá-los ao máximo. Tanto mais que, no caso português, nenhum média vive sem dificuldades financeiras, o que o leva a aproveitar todas a hipóteses de “peças” para o seu conteúdo. Dando-nos direito a declarações e gestos desprovidos (quantas vezes?) de toda e qualquer significação política ou mesmo sociocultural.
Embora até tenha ganho a vida em jornais, radiojornais ou telejornais, o atual presidente da República nunca foi jornalista no sentido próprio do termo. Nem mesmo editorialista ou cronista na definição estrita destes géneros jornalísticos. Foi sobretudo um político que navegava em águas de manobra, instrumentalização e entretenimento a pretexto de “análise”. O que, em tantos anos, lhe permitiu ganhar notoriedade, inaugurando um berlusconismo-marcelista que o viria dispensar de muito do que os outros candidatos tiveram que fazer aquando das últimas eleições presidenciais. Como lhe permitiu conhecer bem o mundo dos jornalistas e das suas práticas profissionais, passando a propor-lhes o que em princípio estes apreciam como ração diária de declarações e gestos.
Agindo desta maneira, fundamentalmente egocêntrica, o presidente da República esvazia drasticamente o campo da informação. “Obrigando” as redações a destacar os meios humanos e técnicos indispensáveis para “cobrir” a atualidade do presidente, não venha a escapar-lhes algo que possa vir a ser considerado como falta profissional imperdoável. E “obrigando” as redações a “cobrirem” toda e qualquer declaração (mesmo desprovida de qualquer interesse) e todo e qualquer gesto (mesmo desprovido de significação), só porque têm por origem o presidente.
Deste modo, as redações ficam carecidas de meios humanos e técnicos para irem para “o terreno” e para se ocuparem de verdadeiros assuntos de atualidade. Da mesma maneira que as “peças” consagradas ao presidente encurtam o espaço disponível para “cobrir” outras temáticas. O que quer dizer que, mais do que nunca, o presidente está a prestar um muito mau serviço à informação e ao jornalismo em Portugal. Mas também é verdade que os média e os seus diretores editoriais são altamente culpados por uma informação umbigo-centrista que em nada dignifica o jornalismo português. Uma informação em nada comparável, na Europa ocidental, à sobriedade dos seus congéneres em relação aos próprios chefes de Estado…
Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles, autor do livro Média, Informação e Democracia (Almedina).



Texto publicado no diário Público, Lisboa, 27 de maio de 2019, p. 23.

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