Dois fantasmas afrontáveis

J.-M. Nobre-Correia
O pluralismo e a qualidade da imprensa são a urgência. E não debater dos inconvenientes das ajudas públicas ou privadas…
No atual prenúncio de debate sobre as ajudas à imprensa, duas oposições clássicas surgem. A dos que são contra as ajudas públicas, sejam quais forem as proveniências. E a daqueles que desconfiam das ajudas privadas, quaisquer que sejam as origens. Duas oposições manifestamente ideológicas, que não tomam em consideração o que se passa de facto nesta matéria no resto da Europa ocidental.
As ajudas públicas à imprensa existem em boa parte dos países da Europa ocidental. Por vezes mesmo há longos decénios. Tomando contornos diversos de um país para outro, desde a ajuda nos custos do papel, das comunicações, da impressão ou da distribuição, até à intervenção em reconversões industriais, em formações profissionais ou em iniciativas editoriais. Recentemente, o orçamento de Estado adotado na Alemanha prevê assim um montante de 40 milhões de euros de ajuda à distribuição da imprensa. Sem que isso tenha atiçado puristas amadores de polémicas gratuitas em que, por seu lado, a paróquia portuguesa é espantosamente fértil.
Quem viveu para além dos Pirenéus (não de fugida mas duradoiramente) e acompanhou de perto, profissionalmente, o mundo dos média em redor, sabe que as ajudas públicas não afetam negativamente o tratamento da atualidade pela imprensa. Até porque a atribuição de tais ajudas (diretas ou indiretas) é geralmente feita em função de critérios sem incidência nas opções tradicionais das redações. Graça a elas, jornais há que podem manter ou mesmo melhorar a qualidade editorial e a dinâmica empresarial. Embora haja por vezes efeitos negativos: manter em vida jornais há muito abandonados por leitores insatisfeitos com a qualidade do serviço proposto.
O caso das ajudas privadas toma aspetos diferentes. A priori, pessoas privadas, empresas e instituições, esperam, na maior parte dos casos, conseguir obter uma “atitude positiva” dos jornais quando estes forem levados a tratar assuntos que lhes digam respeito. E, muitas vezes, as redações sentem-se entravadas no tratamento de uma atualidade ligada a financiadores importantes (situação também bem conhecida em relação aos anunciantes).
A situação ideal é evidentemente a do jornal propriedade dos seus redatores (ou do conjunto dos seus trabalhadores) vivendo exclusivamente das receitas dos leitores-compradores, sem interferência de outras espécies de receitas. Mas esta situação é rara e quase inexistente. Embora a tecnologia digital permita agora iniciativas, algumas das quais, poucas, são um sucesso: o caso mais célebre é provavelmente a do francês Mediapart: lançado em 2008, beneficiário desde 2011, conta atualmente mais de 150 mil assinantes e uma equipa de 87 permanentes, dos quais 47 jornalistas.
O que é certo é que a independência de uma redação decorre antes do mais da “cultura” reinante no seu seio. Vimos assim os redatores de Le Monde perderem a propriedade do jornal em 2010 (quando era, desde os anos 1950, o modelo inspirador de muitas redações europeias) e encontrarem-se agora em vésperas de obter dos acionistas a transformação da empresa editora em fundação.
De qualquer modo, os opositores a ajudas públicas ou privadas optam inconscientemente por uma redução e até uma extinção dos média de informação. Escolhendo consolarem-se com o que a internet propõe gratuitamente e, na grande maioria dos casos, nada tem a ver com o jornalismo. Felizes países, no entanto, que, à falta de melhor, podem contar com diários ou semanários excelentes como El País ou El MundoLe MondeLe FigaroLibérationL’ObsL’Express ou Le PointCorriere della SeraLa RepubblicaLa Stampa ou L’Espresso, todos eles propriedade de interesses exteriores ao mundo dos média! Antes eles e a qualidade da informação que propõem (e que é preciso confrontar) do que o deserto e a manipulação incontrolável de um “jornalismo cidadão” de sarjeta!
A situação da imprensa escrita na Europa é preocupante. E a situação em Portugal é tragicamente inquietante, tão pouco abundante e pluralista ela é. Razão mais que sobeja para sabermos inovar e criar uma imprensa em papel ou em digital que tanta falta faz à democracia portuguesa. Venham lá de onde vierem as ajudas devidamente enquadradas segundo critérios previamente definidos…
Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles, autor do livro Média, Informação e Democracia (Almedina).


Texto publicado no diário Público, Lisboa, 28 de dezembro de 2019, p. 7.

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