Esta obstinada letargia congénita

J.-M. Nobre-Correia
Professor emérito de Informação e Comunicação na Université Libre de Bruxelles.
A situação extremamente preocupante em que se encontra a imprensa em Portugal tem razões históricas que a explicam sem a justificarem…
A imprensa é em Portugal uma atividade tardia. O primeiro mensal, Gazeta em que se relatam as novas todas que houve nesta Corte e que vieram de várias partes no mês de novembro de 1641, é publicado em 5 de dezembro de 1641, quarenta e quatro anos depois dos primeiros congéneres europeus. A Gazeta de Lisboa, primeiro semanário, aparece em 10 de agosto de 1715, cento e dezasseis anos após os primeiros periódicos deste tipo. E o Diário Lisbonense, lançado em 1 de maio de 1809, chega cento e cinquenta e nove anos depois do Einkommende Zeitungen, de Lípsia [Leipzig]. Isto é: o atraso não só não é recuperado como até vai aumentando!…
Por outro lado, a situação da imprensa em Portugal sempre foi bastante frágil. Com numerosas publicações com durações de vida muito curtas. Com tiragens reduzidas: nos começos do século XX, mais de 50% das publicações tem tiragens inferiores a 500 exemplares e só oito jornais têm mais de 10 mil. E quando se diz e escreve por aí que o Diário de Notícias e O Século, em fins do século XIX princípios do século XX atingem os 80 mil exemplares, esquece-se que, por essa mesma altura, os franceses Le Petit Journal e Le Petit Parisien ultrapassam já, um e outro, o milhão de exemplares, o que, mesmo ponderado em relação às demografias dos dois países, mostra a modéstia dos diários lisboetas. O Século parece mesmo ter uma tiragem de 160 mil exemplares por alturas do regicídio, em 1906, mas Le Petit Parisien chega aos 2,3 milhões em 1917 e mesmo, excecionalmente, aos 3,0 milhões em 1918, no dia após o Armistício.
Explica-se esta fragilidade pela altíssima taxa de analfabetismo que atinge os 82,4% em 1878 e ultrapassa ainda os 20,0% em 1970, quando há populações totalmente alfabetizadas em fins do século XVII na Alemanha, por exemplo. Mas explica-se também pelo baixo poder de compra de uma população que vive então ainda numa economia de subsistência e para quem o jornal continua a ser, não um produto de consumo corrente, mas um produto de luxo. Ou ainda pelas comunicações extremamente difíceis, que dificultam a distribuição dos jornais de Lisboa e do Porto “no interior” do país. Um “interior”, fora da faixa litoral de Braga a Lisboa, onde as instalações tipográficas capazes de produzir diários ou semanários de alguma importância são praticamente inexistentes.
A todas estas insuficiências de base vem juntar-se uma grande instabilidade política e social desde, grosso modo, as invasões napoleónicas até à instauração do Estado Novo, instabilidade de natureza a intensificar a procura de informação, é certo, mas pouco favorável ao empreendedorismo na imprensa. E sobretudo um clima geral, durante boa parte do século XIX e da Primeira República, em que os períodos de real liberdade de informar são menos numerosos do que os de repressão, para não falar na censura sufocante que domina todo o Estado Novo.
Quando estas condições de base são largamente superadas no último quartel do século XX, já a sociedade portuguesa está a entrar decididamente na era do audiovisual e sobretudo da televisão. O que quer dizer que, globalmente, a população portuguesa viveu alheia à cultura do escrito, à margem da informação e até do entretenimento escritos, e passa diretamente para a era da informação e do entretenimento televisivos. Antes que a era do digital e da internet se abra ao público em geral em meados dos anos 1990.
Ora, esta nova era permite nomeadamente ultrapassar boa parte das dificuldades a que os editores portugueses se confrontam desde sempre, em termos de produção (composição, montagem e impressão) como de distribuição dos jornais. Abrindo portas simultaneamente a uma dimensão mais capilar da informação como a outra de caráter planetário. A multiplicação das edições ultra-locais e micro-especializadas passa a ser possível. Como é razoável doravante querer atingir um leitorado espalhado pelo mundo fora.
Forçoso é, porém, constatar que, uma vez mais, os editores portugueses não estão a tirar proveito das novas tecnologias. Nem eles nem os numerosos jornalistas recém-licenciados, desempregados ou pré-reformados que não se têm mostrado particularmente motivados pelo lançamento de novas publicações (diárias ou periódicas) digitais. Ao contrário do que acontece para além da fronteira portuguesa, nomeadamente em Espanha e em França, onde as iniciativas nesta matéria são numerosas e, em muitos casos, de grande qualidade jornalística.
O bom funcionamento de uma democracia pluralista supõe, no entanto, a participação ativa dos cidadãos. E, para isso, estes têm que dispor de uma informação de qualidade, em termos fatuais como em termos de análises e de opiniões contrastadas. O que supõe um pluralismo de publicações das mais diversas periodicidades, assim como uma diversidade de conteúdos e de abordagens das atualidades imediata e não-imediata. Pluralismo e diversidade tanto mais urgentes que vivemos um tempo de mutações profundas nos modos de acesso à informação, assim como na difícil relação dos cidadãos com uma democracia cujo futuro lhes parece cada vez mais problemático…

Texto publicado na revista Meios, Lisboa, n° 3, novembro-dezembro de 2019, pp. 13-14.

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