A tentação de Ícaro

J.-M. Nobre-Correia

Numa larga ausência de sentido crítico, os média dão-lhe uma tal guarida que o levam provavelmente a sonhar com outros altos voos…

Vivemos em Portugal tempos espantosos. De grande originalidade. Mas bastante estranhos também. Em termos políticos como mediáticos. Ou melhor: tempos que são fruto precisamente da conjunção de uma singularidade política com uma não menor singularidade mediático-jornalística.

De um lado, temos um personagem que há cinquenta anos instrumentaliza compulsivamente os média. Com a “criação de factos”. Com pseudoanálises da atualidade política, mas de facto sobre toda a espécie de assuntos. Com constantes declarações a propósito de tudo e de nada. Por uma obsessiva necessidade de fazer falar de si, de levar os média a citá-lo a propósito dos mais inverosímeis temas. Nunca esquecendo a dimensão manobreira do que diz ou escreve. Mantendo porém relações de extrema cordialidade com os meios jornalísticos, guardando embora a distância que convém entre gentes de condições diferentes.

Para além mesmo dos numerosos anticorpos que suscitou no seu próprio meio e não só, tal estratégia de afirmação pessoal manifestamente resultou. A tal ponto que, chegado o momento de sonhar com uma candidatura à mais alta magistratura da nação, o dito personagem quase não precisou de investir o esforço e os montantes financeiros dos outros candidatos: graças aos média, era por demais conhecido dos portugueses de aquém e além-fronteiras.

Investido na função tão ambicionada, a estratégia de omnipresença quotidiana na vida dos cidadãos deixou de deparar com o menor travão e a mais ínfima barragem. Até porque os média portugueses, pobres de meios humanos, técnicos e financeiros, não gozam verdadeiramente da força necessária para se oporem ao rolo compressor das iniciativas provenientes de tal “criador de factos” e moinho de palavras, provedor de matéria para encher espaço e tempo dos seus jornais. Muito menos quando, historicamente, o jornalismo português se pratica largamente sentado, tendo telefones e computadores como adjuvantes no conforto das redações. Ou exercido entre colegas e “grandes deste mundo”, em conferências e demais viagens de imprensa.

Média e jornalistas são assim claramente incapazes de pôr em prática uma atitude crítica, no melhor sentido da palavra, em relação a iniciativas e declarações do personagem em questão. Calibrando-as em função do que diz a Constituição, das atribuições que lhe reserva e das competências que poderão realmente ser as suas em matérias que exigem maior ou menor conhecimento técnico ou científico. Calibrando-as sobretudo em função dos mais elementares critérios de uma prática exigente de um jornalismo de qualidade, de referência ou mesmo “popular”.

Esta ausência de uma prática conforme aos melhores critérios do jornalismo faz que sejamos assim assoberbados diariamente pelas mais diversas “peças” sobre as iniciativas e declarações mais inacreditáveis, os média atribuindo-lhe demasiadas vezes iniciativas que não são de facto dele, quando não são mesmo risíveis. Contrariamente ao que se passa com os média europeus em relação aos seus próprios chefes de Estado, quase sempre pouco e até mesmo raramente presentes na atualidade coberta pelos média do próprio país. 

Só que a estreiteza do terreno de jogos político-mediático nacional já não satisfaz as ambições desmedidas de tão ilustre personagem. Daí as numerosas visitas oficiais a países estrangeiros que, a seus olhos, têm a vantagem de serem igualmente tratadas pelos média desses países. E agora esta extraordinária ideia de atribuir o grande-colar da Ordem da Liberdade ao presidente da Ucrânia. Mais do que isso: de ir entregar a dita condecoração a Kiev, numa Ucrânia em guerra.

É claro que, como é habitual, o autor de tal iniciativa se fará acompanhar por um séquito de jornalistas devidamente convidados, que não deixarão de pôr em valor a ousadia, se não a coragem, do visitante. E, claro está, um sem número de média estrangeiros não deixarão de evocar o acontecimento, aumentando assim grandemente uma visibilidade com que, tudo leva a crer, ele sonha há muito…

Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles, autor do livro “História dos Média na Europa” (Almedina).


Texto publicado no diário "Público" em linha, Lisboa, 26 de fevereiro de 2023.

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