Uma intolerável canhonada

J.-M. Nobre-Correia

Dia após dia após dia, as televisões praticam uma informação que pouco tem a ver com um desejável jornalismo de qualidade e de cidadania…

Nos anos 1970, uma convergência de acontecimentos abala a história portuguesa contemporânea. Dá-se, primeiro que tudo, claro, o 25 de Abril e a eclosão imediata ou progressiva da Democracia e do Estado de direito. Paralelamente, opera-se um mais largo acesso aos diversos níveis de ensino, assim como a uma sensível melhoria das condições de vida económica dos chamados meios populares. E como consequência deste último aspeto, assiste-se também a uma vasta expansão dos recetores de televisão, o que traduz uma certa ascensão social de boa parte da população.

As emissões de televisão invadem os lares e, lentamente, vão tendo repercussões na vida social, transformando-a percetivelmente. Com os cidadãos passando a frequentar cada vez menos os tradicionais lugares de sociabilidade (cinemas, cafés, associações…), ficando em casa para assistir a programas propostos pelo único canal e, a partir de 1978, por dois canais. E, entre esses programas, telejornais e demais emissões de informação.

A importância tomada pela televisão em matéria de informação e divertimento nos pós-25 de Abril é progressivamente tanto maior que os hábitos de leitura tinham até então sido largamente condicionados pela alta taxa de analfabetismo, pela falta de credibilidade de uma informação escrita previamente censurada e pelo baixo poder de compra de potenciais leitores de outros meios de informação. Até porque a sedução das imagens facilita a rápida conquista das audiências, embora as legendas limitem ainda fortemente a compreensão do que é proposto.

A televisão passa assim a ser a principal dispensadora de informação e de cultura da grande maioria da população. É ela que lhe mostra pessoas, coisas e lugares antes desconhecidos. Que lhe propõe uma certa abordagem da vida no mundo e na sociedade portuguesa. Que lhe sugere grandes temas de conversa em família e em sociedade. Que lhe inculca uma linguagem, uma terminologia, e até formas de exposição e de argumentação.

Porém, o “espírito do tempo” no pós-25 de Abril faz que os programas, e muito especialmente as emissões de informação e os telejornais, sejam concebidos numa perspetiva militante. Num militantismo de certo modo generoso mas claramente enviesante no que diz respeito ao tratamento dos factos de atualidade. E, depois, com o aparecimento das televisões privadas em 1992-1993, a lógica da concorrência impõe-se, degenerando a disputa das audiências numa guerrilha permanente entre programas de informação.

Com o decorrer do tempo, as derrapagens no tratamento da informação passam a ser o-pão-nosso-de-cada-dia. Em termos de seleção e hierarquização dos acontecimentos de atualidade, a prioridade é dada a assuntos sensacionais que têm sobretudo três origens: os “faits divers”, o futebol e a partidarice. E com esta terceira origem, são as declarações de uns e de outros (e maioritariamente sempre dos mesmos), as tricas entre eles e os exageros de linguagem que são privilegiados, reduzindo a vida política a uma detestável fulanização desprovida de consistência e de escrúpulos.

Estender micro e câmara a toda e qualquer mandatário público ou galonado, assim como a indivíduos capazes de mandar umas “bocas” e pronunciar umas inépcias, é o tratamento preferido pela maioria dos jornalistas de televisão. Jornalistas que quase nunca se preocupam em recolher e verificar os factos, e muito menos em elaborar cuidadosamente elementares sínteses e perspetivações dos ditos factos.

As singulares conceções de independência, objetividade e pluralismo que reinam no meio, levam jornalistas de televisão a preferir declarações que “arrasam” (termo que adoram) decisões da administração pública e gestos que violam a legalidade instituída. E dão mesmo a primazia às críticas virulentas que visam a vida política e os políticos. Praticando uma canhonada diária sem tréguas do Estado de direito e da Democracia que, ao longo dos recentes decénios, tem formado a cultura de base das gentes deste país. Admiremo-nos depois com a mais que sombria evolução ideológica que se anuncia…

Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles, autor do livro “História dos Média na Europa” (Almedina).

Texto publicado no Público em linha, Lisboa, 25 de abril de 2023.

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