Esta terra merece melhor…

J.-M. Nobre-Correia
Fundão : Quando incompetência e ilegalidades têm transformado a cidade numa mostra de ruínas e de atentados aos mais elementares princípios da estética arquitetónica e urbanística…
Tão longe quanto a memória permite ir, sempre correu água no Chafariz das Oito Bicas. De duas, de três ou de quatro bicas, mas nunca das oito ao mesmo tempo, é certo. Mas agora a grande novidade é que o Chafariz das Oito Bicas está seco, totalmente seco ! E isto depois das obras que, felizmente, graças à intervenção crítica de cidadãos, não caíram no ridículo arquitetónico e urbanismo desenhado por “especialistas” camarários. Os mesmos, ao que parece, que se esqueceram de estudar previamente a questão das condutas de água que abastecem o chafariz !
Que o mais emblemático chafariz público do Fundão esteja a seco é tragicamente significativo do descalabro urbanístico e arquitetónico em que se encontra esta terra. É verdade que isso não data de agora. E até talvez se possa dizer que, nos decénios mais recentes, tal descalabro data provavelmente da abertura da então Avenida Salazar, a atual Avenida da Liberdade.
Velhos atentados à velha vila
Graves anomalias caraterizam-na logo de início : um traçado em ângulo agudo em relação à rua Conde de Idanha-a-Nova (quando concebê-lo em paralelo teria sido a opção lógica) ; um desenho urbanístico absurdo, com uma dupla faixa de rodagem central e uma estranha faixazita lateral ; uma inacreditável interrupção da dita rua Conde de Idanha-a-Nova com a construção da chamada Auto Gare (…graças ao facto que um dos sócios desta era então vereador da Câmara Municipal salazarista !).
Vieram acrescentar-se a estas anomalias, edifícios com profundidades diferentes que, com as suas traseiras, transformaram a rua Conde de Idanha-a-Nova num buraco praticamente irrecuperável. E depois, com os anos, dos edifícios obrigatoriamente com dois andares passou-se a três, antes de serem cinco. Um conjunto de aberrações arquitetónicas e urbanística que deram àquela que os fundanenses designam muito simplesmente por “Avenida” a falta de imponência e de beleza que poderia ter, como eixo de transição entre a antiga e a nova cidade.
Continuou depois o massacre da urbe com a destruição da magnífica sala de espetáculo “à italiana” do Casino Fundanense, com uma plateia, um balcão, frisas, camarotes e uma “geral” : um crime imperdoável, absolutamente imperdoável ! E tanto mais imperdoável quando colocaram nesse espaço uma mera placa de cimento, com uma sala totalmente desprovida de graça, inteiramente nua, na parte de cima e lojas de arrecadações no rés do chão !
Depois, a edilidade municipal foi deixando destruir pequeninos bairros como aquele em frente da antiga fábrica de refrigerante A Invencível ou aquele onde se encontrava o quartel da GNR e está agora a Caixa Agrícola, tomando mesmo a iniciativa de destruir, em sucessivos atentados, o primoroso Parque das Tílias. Como deixou desfigurar tragicamente ruas tão antigas como a Marquês de Pombal (comummente chamada dos Galegos), a Quintãzinha, e por aí fora. Para não falar das tristes ruinas que se vão anunciando no eixo central constituído pelas ruas José Cunha Taborda, João Franco e Cinco de Outubro. Na João Franco, os brilhantes arquitetos da CMF deixaram mesmo construir dois horrores modernaços ao lado da conhecida Leitaria !
No outro eixo vertical, que vai da Praça Velha ao Largo de Santo António, ruínas e horrores arquitetónicos vão-se também acumulando. Com aquela esquina da rua José Germano da Cunha com a rua de Santo António, que foge totalmente à estética de origem. A que virá acrescentar-se em breve, pois já está em construção, em frente da rua do Sousa, algo que tudo leva a crer não respeitará também a arquitetura tradicional desta zona velha da cidade.
Mas nas partes novas da cidade, as aberrações também abundam. Basta olhar para o espaço que vai da estação rodoviária ao Pavilhão Municipal, passando pelas traseiras da Associação Distrital dos Agricultores e indo até ao Cantinho do Mimo. Alguém tem a menor dúvida sobre o gigantesco buraco que ali irá ficar para sempre ? Até que, um dia destes, alguma derrocada venha deitar abaixo a cercania da dita Associação, visto que andaram por lá impunemente a escavar e retirar terra, abrindo assim um enorme vazio…
Novos atentados à nova cidade
Mas há que falar também na aberração que foi a construção das piscinas cobertas, longe do espaço magnífico ocupado pelas piscinas de verão, na encosta da Gardunha, com uma formidável vista para a Cova da Beira e a Estrela. Para além de que a dupla localização das piscinas impede a realização das sinergias mais elementares : os novos ricos, que chegam pela política à administração pública, quando gastam o dinheiro que não é deles, não têm porém tais preocupações !
Assim vai este pobre Fundão sem visão estratégica, sem sentido algum da planificação. Prova disso é a localização de todos os supermercados na mesma saída do Fundão, todos em cima uns dos outros. Como se os bairros situados perto das outras saídas da cidade e os habitantes das aldeias que por elas têm acesso a ela não precisassem também de supermercados, dispensando eventualmente o obrigatório veículo automóvel.
E depois, pergunta essencial :  a demografia do Fundão e das aldeias do seu concelho precisam realmente de tantos supermercados ? E não foram estes que destruíram os numerosos comércios intramuros que faziam uma das marcas caraterísticas do Fundão ? Vejam-se os dois grandes eixos centrais do Fundão, do Parque das Tílias ao Jardim Municipal, do Chafariz das Oito Bicas ao Largo de Santo António : os comércios fecharam uns atrás dos outros, dando as lojas fechadas e a ausência de atividade humana uma terrível imagem de deserto em vésperas de morte anunciada.
Não impede que, na parte nova da cidade, as lojas em rés do chão são manifestamente muito mais numerosas do que as necessidades. Lojas vazias e que ficarão certamente vazias durante muitos e muitos anos. Superabundância e vazio fruto de uma ausência de planificação por parte do(s) executivo(s) municipal(ais) e de uma manifesta incompetência dos departamentos diretamente responsáveis.
O Fundão tem evoluído mal, muito mal. Sob a direção de gente “sem mundo”, preocupada antes do mais com a sua ascensão social, sem sólida cultura de fundo, incapaz de conceber uma gestão e um desenvolvimento urbanos adequados às caraterísticas históricas da cidade e a uma inserção harmoniosa das iniciativas novas no seu contexto orográfico natural.
A triste realidade é que não bastam “canudos”. Esta terra precisa urgentemente de arquitetos e urbanistas de qualidade, gente de cultura e com uma evidente sensibilidade estética. Mas também de arquitetos e urbanistas respeitadores da legalidade democrática e dos direitos dos cidadãos que escolheram o Fundão como terra de residência.
Depois é absolutamente indispensável que os fundanenses amem a sua terra e respeitem com carinho o espaço público, aquele que é precisamente de todos. Um espaço público que, por exemplo, não pode continuar a ser vulgar e aflitivo caixote de lixo comum, nem local indiferenciado de um estacionamento horrivelmente caótico…
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Normalmente, um texto desta natureza deveria destinar-se a um média local. Nomeadamente àquele a que dei a minha colaboração por intermitência durante cinquenta anos, mas em que recusei continuar a fazê-lo.
De qualquer modo, o dito média está totalmente enfeudado aos poderes locais, tendo-se transformado numa espécie de porta-voz oficioso, para não dizer na voz do seu dono. E sê-lo-á provavelmente ainda mais se as manobras atuais em torno da sua propriedade vierem a concretizar-se…


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