O residente de Belém ganhou mesmo?

J.-M. Nobre-Correia

Com o golpe de Estado palaciano de 7 de novembro, quis alargar os poderes que se foi atribuindo para além do que estipula a Constituição. Como irresponsável congénito, pouco lhe importa o caos de que acendeu a mecha…

Sabíamos que o atual residente em Belém foi dispensado de prestar serviço militar nas colónias porque o papá era ministro salazarista e o “padrinho” in petto era presidente do Conselho. Como sabíamos que, por ocasião do Congresso da Oposição de 1973 em Aveiro, escreveu ao “padrinho” para denunciar as manobras comunistas (quando a sorte que a Pide reservava aos comunistas era particularmente dolorosa). Como sabíamos ainda que passou uma boa quarentena de anos a intrigar e a instrumentalizar os cidadãos, do Expresso à TVI (e Francisco Pinto Balsemão como Paulo Portas que o digam), em intervenções a que chamava “comentário político”.

Não impede que esta omnipresença em jornais, em rádio e em televisões lhe deu uma tal notoriedade que o dispensou largamente de fazer grandes esforços e investimentos financeiros para se fazer eleger como presidente da República em janeiro de 2016. E mesmo de se fazer reeleger com a máxima facilidade em janeiro de 2021 para um segundo mandato com o inacreditável e imponderado apoio do Partido Socialista e mais particularmente do primeiro-ministro e secretário geral do PS.

Ora, durante o primeiro mandato, o residente de Belém transformou-se num incontinente verbal. O seu egocentrismo exibicionista levou-o a uma presença quase diária e mesmo multidiária nos média e mais particularmente nas televisões (que são os média socialmente dominantes), falando sobre tudo. Mostrando-se a fazer as mais inacreditáveis declarações e a ter atitudes de caráter teatral pouco ou mesmo nada dignas de um chefe de Estado. Dando uma imagem desastrosa e perfeitamente inconcebível por parte de presidentes, reis, príncipe ou grão-duque no resto da Europa democrática.

Paralelamente, foi alargando progressivamente os seus poderes, ultrapassando claramente o que estabelece a Constituição nesta matéria e intervindo repetida e manifestamente em áreas de outros poderes. O que só foi possível porque, durante a primeira legislatura, o governo minoritário do PS precisava da tolerância do presidente para se poder manter no poder. O que levou o governo socialista a admitir atitudes perfeitamente inadmissíveis por parte do presidente.

A dissolução prematura da Assembleia da República em dezembro de 2021 pôs em evidência a vontade do residente em Belém de querer ter uma intervenção mais percetível nos destinos dos poderes legislativo e executivo. E, de facto, as suas interferências na vida política tornaram-se constantes e cada vez mais juridicamente inaceitáveis, o exemplo mais evidente foi o da tentativa publicamente afirmada de querer demitir um ministro. Para não falar das intoleráveis e repetidas ameaças de dissolução da Assembleia da República. Não falando já do inacreditável caso das gémeas brasileiras. Até chegar ao ponto em que, tudo leva a crer, montou um golpe de Estado palaciano com a cumplicidade de uma procuradora manifestamente incapaz de assumir a função para que fora designada.

Poder-se-á dizer que o primeiro-ministro, perante as insinuações postas a correr com a ajuda generosa dos média, foi demasiado rápido a apresentar a sua demissão. O que se pode compreender no que diz respeito à vontade de preservar uma imagem de político íntegro. Mas também poder-se-á provavelmente imaginar que estava com pressa de poder preparar a tempo a anunciada futura alta função na União Europeia. Embora a justiça lhe possa trocar as voltas, retardando sadicamente a decisão que o poderá lavar de qualquer suspeita.

Sem querer ouvir a proposta do PS que avançou o nome de outra personalidade de reconhecida competência para primeiro-ministro (embora esta personalidade nem seja aderente do PS), nem sequer a opinião partilhada pelos membros do Conselho de Estado, considerou o residente em Belém que a sua hora tinha chegado. Hora de tentar com novas eleições antecipadas levar os seus correligionários da direita a formar governo. Hora também de alargar ainda mais os seus poderes e as suas interferências na vida política, sabendo, como todos os cidadãos um pouco atentos, que de novas eleições só poderia sair o sobressalto da extrema direita e uma inquietante fragmentação da representação parlamentar.

A realidade ultrapassou porém os seus sonhos: a extrema direita saiu do escrutínio bem mais forte do que ele provavelmente imaginara; e o seu PSD saiu bem menos vigoroso do que ele esperava, minoritário na Assembleia da República e quase em pé de igualdade com o PS. O que não o impediu de começar imediatamente a manobrar no sentido prioritário dos seus interesses (dele) e não propriamente nos do seu partido. É que o residente de Belém vê-se desde já como o personagem suficientemente poderoso para poder de facto ter a mão sobre os fragilizados poderes legislativo e executivo. Não querendo ver o ciclo de instabilidade em que ele irresponsavelmente fez entrar o país, só pensando no papel chave pessoal que ele quer absolutamente assumir.

Tudo leva a crer que, mais cedo ou mais tarde, o PSD (e acessoriamente o ressuscitado minúsculo CDS) vai mesmo ter que aliar-se ou fazer um acordo com o Chega. Se não, o governo da Aliança Democrática não terá uma vida longa. No primeiro caso, o papá ministro salazarista e o “padrinho” presidente do Conselho, se ainda fossem deste mundo, sentiriam orgulho num pupilo que fez regressar o país a “bases sãs”, suficientemente reacionárias. No segundo, ele será levado a dissolver de novo a Assembleia da República, o que não conduzirá necessariamente a uma configuração parlamentar promissora de estabilidade.

O atual residente em Belém ficará tristemente na história como o personagem egocêntrico exibicionista doentio, violador regular do espírito e da letra da Constituição, fomentador permanente da fragilização e da destabilização do Estado de direito e da Democracia portuguesa. Pelo que esperemos que, apesar da proteção prevista pelo artigo 130° da Constituição, ele venha um dia a ser julgado e condenado…


Comentários

  1. Muito bem. Tal como Miguel Sousa Tavares o fez no Expresso, é preciso que as vozes independentes se façam ouvir.

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  2. Julgado e condenado ! Que acusado já está, aqui.

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  3. Subscrevo tudo o que diz, apenas relembrar que quem também o PS o ajudou a eleger-se. Como diz o ditado, " quem seu inimigo poupa..."ini

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