Média e jornalismo em democracia

J.-M. Nobre-Correia

 

Será a informação a que temos direito de natureza a nos permitir ser cidadãos no mais amplo sentido do termo?…

 

É preciso ler, ouvir e ver média de países da nossa própria área geográfica e cultural para nos darmos conta até que ponto a informação jornalística vai mal no “país à beira-mar plantado”. Ou melhor: não espreitá-los apenas de raspão, mas frequentá-los assiduamente com a devida atenção crítica. E procurar então compreender o porquê da situação em Portugal.

Oh!, as insuficiências da informação jornalística vêm de longe, consequência de um velho país cedo ultracentralizado, vivendo durante séculos num analfabetismo largamente enraizado e naturalmente desprovido de preocupações culturais. A sua paisagem mediática nasceu assim disforme, praticamente circunscrita a uma estreita faixa do litoral Centro-Norte, tendo como ponto de apoio Lisboa e muito acessoriamente o Porto.

Acrescentemos a tais dados de base o facto de os mecanismos de controlo da criação de novos média terem sido instaurados em Portugal bastante cedo. A que veio depois juntar-se uma pesada censura religiosa e civil que foi largamente vigorando, com breves momentos de liberdade mais ou menos relativa, até ao 25 de Abril de 1974. O que deixou atrás de si um clima de descrédito da produção jornalística e até da atividade jornalística, conduzindo, consequentemente, a uma desconfiança e a um afastamento dos cidadãos. Pelo que, na sua grande maioria, a população nunca adquiriu hábitos de frequentação voluntária dos média de informação, não lhes outorgando as desejáveis credibilidade e confiança.

O que trouxe o 25 de Abril

Ora o 25 de Abril trouxe uma duradoira liberdade aos média, é certo, mas favoreceu também o jornalismo militante, engagé, que procurará mais tarde confundir-se no chamado “jornalismo de causas”. E as redações passaram a ser progressivamente invadidas por diplomados das recentes escolas de “comunicação”, de “ciências da comunicação”, de “ciências da informação” e mais raramente de jornalismo tout court. O que não significou necessariamente um reforço quantitativo e qualitativo das redações fragilizadas, por um lado, pela própria proliferação dos média e a inevitável fragmentação das audiências e das receitas, e, por outro lado, pela considerável expansão de “serviços de comunicação” e demais “adidos de imprensa” de empresas, instituições e personalidades.

Surgiu assim um jornalismo largamente inspirado pelas “agendas” destes serviços e adidos. Partidos, ordens profissionais, sindicatos e associações de todo o género, para além de instituições públicas e grandes empresas, passaram a sugerir do que convinha que os média falassem e como falar de uma atualidade que lhes dizia respeito. Percorram-se atentamente os média de uma mesma cidade ou região e ver-se-á o que há de comum na hierarquização e na formulação dos temas de atualidade.

Sendo o espaço e o tempo dos média naturalmente limitado, vastos aspetos da vida quotidiana dos cidadãos são assim escamoteados. Sobretudo se ela disser respeito aos cidadãos que vivem longe dos centros de poder do litoral Centro-Norte, em chamadas zonas cinzentas da atualidade. O que leva estes cidadãos a considerarem que a atualidade dos “grandes média” nacionais, no fundo, pouco ou nada lhes diz respeito. O que é claramente posto em evidência pelos números irrisórios de exemplares das publicações editadas na capital vendidos “em banca” nos distritos do chamado “interior”.

Partindo do pressuposto de que uma informação jornalística de qualidade é condição essencial absolutamente indispensável ao bom funcionamento de uma sociedade democrática, a questão que se põe desde logo é de saber se esta é realmente possível em Portugal. Isto é: num Estado megacéfalo em termos de implantação dos chamados grandes média nacionais, como de focalização em relação à atualidade referente a esta região de implantação, que é assim privilegiada pela informação jornalística. Uma interrogação que toma tanto mais pertinência quando a informação jornalística praticada é globalmente deficiente comparada às mais correntes práticas no resto da Europa ocidental.

Construir uma sociedade democrática

Mas se quisermos que a construção de uma sociedade democrática no pleno sentido do termo continue a fazer parte de um projeto para o futuro, há que rever radicalmente a arquitetura atual da paisagem mediática portuguesa, reequilibrando-a fortemente em termos geográficos, à imagem da descentralização da arquitetura alemã ou, noutra escala, da arquitetura belga, por exemplo. Reforçando a regionalização dos média, de modo a que a informação de proximidade seja uma realidade e que Portugal de lés-a-lés esteja finalmente presente nos média ditos nacionais.

Paralelamente a esta reformulação das estruturas de base, há também que reconceber a prática jornalística, na hierarquização dos factos, como na verificação, perspetivação e análise destes factos. Deixando de correr desastradamente atrás do sensacionalismo e da mera procura de emoções. Fazendo da informação um ato de solicitação da inteligência dos cidadãos, de modo a que eles se sintam melhor em situação de orientarem as suas vidas quotidianas e de fazerem racional e serenamente as suas próprias opções.

Há que renunciar a uma prática jornalística concebida prioritariamente em torno de políticos mais ou menos exibicionistas em termos de atitudes como de declarações que lhes permite estarem quotidianamente (e mesmo pluriquotidianamente) presentes na atualidade mediática. Como a uma informação construída à maneira de uma série folhetinesca, os mesmos temas sendo tratados repetidamente até ao momento em que um novo acontecimento permite dar início a outro folhetim, fazendo esquecer o desenlace da estória precedente. Assim como a peças anunciadas como “reportagens” que são na melhor das hipóteses correspondências em que o jornalista constitui a principal imagem. Ou a “reportagens” no estrangeiro que redundam demasiadas vezes em meras peças editorializantes. Ou ainda a “diretos” em que o jornalista quase se limita a estender o microfone aos mais diversos “chefes” ou a quem muito simplesmente passa por acaso ao lado dele, sem que, boa parte das vezes, nada de substancial seja dito. Para não falar da omnipresença quotidiana obrigatória do futebol e daquela grande originalidade nacional que consiste em seguir autocarros de jogadores de futebol a caminho de um estádio, aeroporto ou hotel. Quando as “peças” elaboradas de verdadeira investigação e de laboriosa documentação são demasiado raras.

Governos sucessivos de direita e de esquerda têm-se abstido de abordar a questão dos média e do jornalismo em Portugal. Porque os políticos receiam ser “postos no cemitério” da informação: que os média passem a esquecer-se deles e deixem de falar deles. Só que enfrentar esta situação é uma urgência absoluta em Portugal, se quisermos que o país possa vir a ser realmente uma sociedade democrática, plural. De modo a que os cidadãos possam sentirem-se membros de pleno direito da sociedade e do Estado que é o deles, e não de uma mera democracia formal…


Texto publicado no diárias As Beiras, Coimbra, 17 de setembro de 2024, p. 19.



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