Da nova razão de ser
Nestes tempos de internet, a informação parece cair do céu como maná. Terá um periódico regional ainda espaço próprio para se afirmar?…
Na era da internet e da chamada globalização, terá ainda sentido publicar um semanário regional? Quando hoje em dia, desde os anos 1970-80, com a desmonopolização do audiovisual, temos rádios e televisões de informação que funcionam 24 horas por dia, durante sete dias da semana? E agora que a internet, no dealbar do novo milénio, permitiu o lançamento de um sem número de rádios e de televisões regionais e locais, para não falar já de blogues e demais podcasts?…
Não confundamos tudo e procuremos distinguir situações fruto de momentos diferentes da História. Antes da informação escrita impressa, os homens (…e as mulheres, claro está!) eram sobretudo informados oralmente. Depois, quando um célebre Gutenberg inventou em meados do século XV os carateres móveis e o prelo para compor e imprimir textos (a não ser que tenha sido antes Coster ou Waldvogel, e que a “invenção” fosse mera adaptação europeia do que se já fazia na China), as primeiras publicações com informações eram impressas em papel de trapos, de um só lado da folha. Sobretudo estas publicações nada tinham de periódico: eram ocasionais, produzidas por ocasião de um grande acontecimento: batalha, funeral de príncipe, festa, vida na corte…. Na Europa, os primeiros mensais apareceram só no fim do século XVI, os semanais no início do século XVII e os diários em fins do século XVII.
Quando, no século XIX, a imprensa se mecanizou, deixou de ser produzida à força de braço, passou a utilizar papel de madeira. O ensino obrigatório desenvolveu-se, mais pessoas passaram a saber ler e a vida política democrática foi ganhando terreno levando naturalmente os eleitores a quererem informar-se antes de votar. E a conjunção destes fatores levou a imprensa a diversificar-se com o aparecimento de jornais destinados às classes dirigentes e aos meios populares, jornais de carater nacional e outros que punham mais o acento na informação local e regional, assim como jornais tratando da atualidade em geral ou de uma mais específica (económico-financeira, desportiva…). Jornais que passaram a propor mais elementos factuais sobre os acontecimentos, mas também opiniões sobre eles.
A maneira de conceber o conteúdo dos jornais sofreu adaptações com o aparecimento da rádio no período entre as duas guerras mundiais. Tanto mais que a rádio podia anunciar rapidamente as notícias e até excecionalmente cobrir acontecimentos em direto. Mas a rádio fazia também chegar a informação a pequenas localidades e zonas rurais onde os jornais não chegavam, assim como a ouvintes analfabetos, incapazes de aceder à leitura de jornais. Pelo que a imprensa teve que alargar os seus horizontes, propor uma maior abundância de notícias e uma informação de proximidade, dois aspetos em que a rádio não podia então fazer-lhe concorrência.
Outra adaptação da imprensa escrita foi operada com o aparecimento no após Segunda Guerra Mundial da televisão que passou a mostrar as pessoas, as coisas e os sítios de que falava. O que levou a imprensa a dar maior importância ao aspeto gráfico e mais especialmente iconográfico, assim como à quadricromia.
A entrada em cena da internet e a sua rápida generalização a partir de 1995 alterou fundamentalmente o estatuto dos antigos média (imprensa, rádio e televisão) e a conceção do jornalismo praticado por cada um deles. Qualquer indivíduo, instituição ou empresa passa doravante a poder produzir e difundir conteúdos que podem reunir caraterísticas dos antigos média: escrita, som e/ou imagem. Enquanto a difusão pode operar-se doravante em tempo real e ter uma dimensão planetária.
Uma das primeiras consequências da nova dimensão quadrimédia foi a de provocar uma perda de importância dos habituais instrumentos de produção, como dos suportes tradicionais de difusão, nomeadamente do papel e das ondas hertzianas. Outra consequência foi a de derrubar as fronteiras clássicas dos antigos média, cada um deles passando a praticar acessoriamente o que eram as expressões técnicas dos dois outros (escrita, som e/ou vídeo). Terceira consequência: as fronteiras usuais de periodicidade, de calendário e de horário foram largamente abolidas. Para além disto, os antigos média foram obrigados a repensar conceções editoriais e de gestão comercial, e até mesmo a função social de cada um deles.
A imprensa perdeu assim largamente a função de anúncio. Hoje já não é pelos diários que tomamos conhecimento das notícias do dia. Da mesma maneira que já não é neles que encontramos as informações de serviço (bombeiros, polícia, farmácias…) e de agenda (cinemas, teatros, concertos…), ou os anúncios classificados (aluguer ou venda de casa, procura de pessoal…). Pelo que os diários passaram a propor mais textos de verificação e aprofundamento dos factos de atualidade, de enquadramento e perspetivação (histórica, sociológica, económica) destes factos, de interpretação e análise prospetiva deles. E como agora os cidadãos deixaram de ser informados quase exclusivamente pelo “seu” jornal e passaram a ser confrontados a informações de múltiplas origens, mais do que nunca o rigor e a qualidade da informação proposta são decisivos na escolha efetuada na compra ou assinatura de um jornal.
No caso da imprensa periódica (não diária) a mutação que se impôs foi a de assumir o anúncio em linha, pela internet, da atualidade local ou regional do dia, ocupando de certo modo o que era antes função da imprensa diária. Paralelamente, propor uma informação mais capilar (que só ela pode fazer), posta em perspetiva, graças a uma prática mais larga de um jornalismo de verificação dos factos, de enquadramento, de interpretação e de análise. Acrescentar ainda tomadas de posição, de preferência contrastadas, sobre temas que dominam a atualidade e sobre os quais os cidadãos se interrogam.
Tais novas razões de ser têm que levar necessariamente a imprensa periódica a uma prática mais regular e alargada do jornalismo de grande reportagem e de investigação, a uma recolha mais pormenorizada do que se passa de significante na sua zona de implantação, assim como à análise prospetiva fruto de um jornalismo de competência, e não já do tradicional jornalismo capaz de abordar toda a espécie de assuntos em termos genéricos, superficiais e sem competência específica. E porque o seu horizonte é o da atualidade de uma área mais ou menos limitada (localidade ou região), ela poderá assim propor um conteúdo com uma real mais valia, a sua especificidade de proximidade permitindo-lhe impor-se perante os outros tipos de média (rádio, televisão, internet) e perante a ignorância ou incompetência dos média ditos “nacionais” ou com outras proveniências regionais…
Contrariamente a uma ideia demasiado propalada, a crise da imprensa em papel não significa de maneira nenhuma uma crise da imprensa escrita. O suporte mudou e mudaram as potencialidades técnicas de expressão do jornal. Abundam agora os exemplos de jornais escritos e em PDF que nunca tiveram tantos leitores compradores e assinantes. Até porque, para além dos textos, dos sons e das imagens que agora propõem aos leitores, oferecem-lhes também a informação em tempo real e a documentação em arquivo, como a interatividade e o acesso personalizado a conteúdos específicos. Pelo que um semanário regional não pode em 2025 ser concebido à imagem do que foi em 1945. Mas os seus 80 anos de idade são a prova de um vigor e de um dinamismo que o levarão a enfrentar positivamente estes tempos de mutação e de novos horizontes!…
J.-M. Nobre-Correia, professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles.
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