Uma temática obsessiva
J.-M. Nobre-Correia
O aspecto que mais impressiona nos média
portugueses é o da importância dada ao desporto. Ou melhor : ao futebol. Sobretudo
se se viveram dois terços da própria vida no estrangeiro. E se, por paixão como
por obrigação profissional, se frequentaram quotidianamente os média de
diferentes países europeus.
É verdade que a massificação da televisão e a
proliferação dos canais fizeram do desporto (e mais particularmente, segundo os
países, do futebol, do ténis, do ciclismo, do râguebi, do automobilismo,…) uma
temática importante. E, média dominante a partir dos anos 1960-70, a televisão “contaminou”
os outros médias no que diz respeito aos critérios de seleção e de
hierarquização da informação. O que se tornou particularmente evidente na
imprensa diária generalista, mais do que na rádio que já acordava então uma
certa importância ao desporto.
Uma importância descomedida
Perante esta vaga favorável à cobertura da
atualidade desportiva, até os diários “de referência” cederam em maior ou menor
grau. Quando, antes, era mais ou menos impensável que prestassem atenção a tal
tipo de atualidade e lhe consagrassem o mínimo espaço (caso do parisiense Le Monde, por exemplo) ! Hoje, é
bastante frequente ver diários “de referência” conceber páginas especiais ou
até mesmo suplementos a competições do género da Taça do Mundo ou da Taça Europeia
de Futebol (quatro páginas diárias sobre o “Brésil 2014” no Le Monde). Tendo no entanto a preocupação
de abordar geralmente essa atualidade sob ângulos diferentes dos outros média e
recorrendo muitas vezes a “penas” ilustres, nomeadamente do meio literário.
Só que, no caso português, a importância dada ao
futebol é totalmente descomedida. Na imprensa diária, mais ainda na rádio e de
maneira totalmente exagerada na televisão, tudo, absolutamente tudo (…ou talvez
não) aí passa : os treinos, as lesões, as contratações, as suspensões, as conferências
de imprensa (dos treinadores, presidentes e jogadores), as chegadas e partidas em
autocarros ou aviões, as chegadas e partidas aos estádios, hotéis ou aeroportos.
Mais as entrevistas a propósito de tudo e de nada de adeptos, as reportagens,
as correspondências e os “diretos” sobre os adeptos de tal e tal outra
localidades do país e até do estrangeiro. Ou ainda as famílias, as namoradas e
os cortes de cabelo… Sem esquecer os políticos (ou mais exatamente : os que
vivem da política) que cometeriam um erro de mercática grave se não fizessem
umas declarações adequadas sobre o assunto. Em suma : um fartote !
Treinadores há que se ouvem todos os dias (ou
quase) na rádio e/ou na televisão. Os portugueses têm todos os dias direito a
imagens de treinos (a sério : mandarão as televisões portuguesas todos os dias
jornalistas e operadores de câmara a cobrir tais acontecimentos ? Ou
tratar-se-á de imagens de arquivo ?). E quando há uma competição considerada
importante, a RTP 1, a Sic, a TVI, a RTP Informação, a Sic Notícias, a TVI 24 e outras mais consagraram ao mesmíssimo tempo emissões do
mesmo tipo ao assunto (…e chama-se a isto “pluralismo”). Com os eternos “comentadores”
em estúdio a dizerem coisas que, ao que parece, são essenciais e sem as quais
os pobres atrasadinhos que muitos de nós somos não compreenderiam nada do que
se passou, está a passar ou irá passar de absolutamente fundamental…
O futebol passou assim a ser uma temática obsessional.
Tema obrigatório dos encontros ocasionais como das conversas de café. Pretexto imperativo
para afirmações patrioteiras bandeirísticas em janelas de domicílios, em
montras de comércios ou até em veículos automóveis, de bonés e polos, chegando
ao ponto de patrioteiros futebolísticos se enrolarem em bandeiras nacionais !
Uma grande problemática nacional
Divertimento que encanta e apaixona multidões, o
futebol passou a ser, em Portugal, uma grande problemática nacional, talvez até
: a grande ambição nacional. Apesar das repetidas derrotas, das desilusões
rapidamente esquecidas graças a média que tudo fazem para que este fogo que
arde não esmoreça e possa alimentar uma paixão que ultrapassa os limites do
razoável.
Ah !, se os média portugueses consagrassem a mesma
importância a descorticar a situação económica, a relatar os grandes debates de
ideias e da cultura, a acompanhar os avanços da investigação e da ciência, a
trazer a lume as experiências (económicas ou sociais) inovadoras que permitem
antever um futuro prometedor, mais risonho ! Nem era preciso tanto : bastava
que lhes dedicassem um quinto, um décimo do tempo que reservam diariamente ao
futebol !
Com esta espécie de revolução coperniciana, escaparíamos
a um clima obsessional de paixão ofuscante, optando por um discernimento sobre mecanismos
da sociedade e do tempo em que vivemos. Poderiam então procurar sair
progressivamente do estatuto de país fronteira entre dois mundos. Entre um
mundo que avança na senda do progresso e outro que espera eternamente que “fundos
comunitários” e outras “ajudas externas” o venham tirar de carências em que se
encontram domínios essenciais de uma sociedade que se pretende moderna. Porque os
próprios cidadãos os descuraram, obnubilados pelo futebol, graças à inestimável
e irresponsável ajuda destes média…