A deceção de uma promessa


J.-M. Nobre-Correia
Média : Estranhamente, a história da imprensa, da rádio e da televisão nos anos 1974-75 tem sido largamente descurada. Um livro recente parecia constituir uma primeira abordagem global do tema : amarga ilusão !…
Excelente título para um livro : A Revolução dos média [1]. Não pela originalidade. Mas pelo facto de permitir duas interpretações : a revolução vista, relatada pelos média ; e a revolução, a rutura operada nos média. Dois tipos de análises espantosamente inexistentes, 40 anos depois dos acontecimentos de 1974-75.
Só que o livro em questão é dececionante. Tanto no que diz respeito à primeira perspetiva como à segunda. Porque de facto não se trata nem de uma nem de outra. Pior ainda : o livro tem dois coordenadores, mas não aparenta ter havido qualquer coordenação. Terá havido sim uma solicitação de textos primeiro e uma recolha de textos em seguida, nada mais. Pela boa e simples razão que não há qualquer linha de orientação metodológica para os textos que compõem o livro : cada um fez o que quis sobre o que quis da maneira como quis !
As especificidades ignoradas
Os seis textos que compõem A Revolução dos média não se debruçam sobre um mesmo período de tempo, nem obedecem a um mesmo tipo de abordagem. A escolha dos temas tratados não tem qualquer coerência. Só dois jornais merecerem ser estudados : o diário República e o semanário O Jornal. Vêm juntar-se-lhes dois textos sobre uma rádio (Rádio Renascença) e a televisão então existente (RTP). Acrescenta-se um estranho capítulo sobre o “jornalismo desportivo” e um ainda mais estranho capítulo final sobre “a imprensa na Revolução de Abril”.
Alguns destes textos começam por longas digressões sem relação direta evidente com os temas que anunciam (caso dos dois primeiros). O capítulo sobre a RTP procede a uma enumeração das mudanças no seio do conselho de administração, a que se acrescentam alguns dados quantitativos pontuais em matéria de exonerações e de suspensões. Matéria abordada como se a RTP fosse uma qualquer repartição pública. E, o que é mais estranho, sem que haja verdadeiramente, concretamente, uma palavra sobre as alterações das estruturas de organização, sobre a programação ou sobre a conceção da informação ! Dito de outro modo : a dimensão jornalística e cultural da RTP é pura e simplesmente escamoteada !
O capítulo sobre o diário República não acrescenta nada ao refrão “oficial” posto então a circular sobre o assunto, para consumo interno e até sobretudo para consumo externo. E a par de longas considerações políticas cuja indispensabilidade não parece nada evidente e da ausência de algumas explicitações necessárias para a compreensão do texto, não há um único dado fatual sobre as tiragens, as vendas, as assinaturas do jornal ! Nem sobre a paginação, o grafismo, o conteúdo, as rubricas. Nem sobre os cronistas e os editorialistas, os antigos e os novos redatores do jornal. Em resumo : um jornal que, mesmo antes de estar “cansado de lutar”, não existia na cabeça do autor como “produto” editorial, jornalístico. Haja embora um último parágrafo (umas meras onze linhas) que formula algumas questões pertinentes.
Nas páginas consagradas ao semanário O Jornal, há nomes que são citados sem que se saiba de onde provêm profissionalmente ou que representam no meio mediático da época (caso de Fortunato de Almeida e de Ruella Ramos citados, sem uma única palavra de explicação). Umas vagas indicações sobre as tiragens não merecem qualquer referência para as credibilizar. Limitando-se o texto a uma passagem em revista de títulos e de editoriais em matéria política. Nada saberemos no entanto sobre em que é que O Jornal poderá ter constituído uma novidade no panorama mediático, editorial e jornalístico da época…
O texto sobre a Rádio Renascença não escapa às mesmas insuficiências anteriormente assinaladas : uma leitura puramente política das relações de forças no interior da estação e no exterior entre governo, Conselho da Revolução, Copcon e partidos políticos. Leitura que, involuntariamente ( ? ), inconscientemente ( ? ), recorre a uma terminologia comprometida, militante, pouco aceitável em termos académicos (todos os autores dos diferentes capítulos sendo com efeito apresentados como académicos em funções).
As salgalhadas incontroladas
Sobre o jornalismo desportivo, o autor do texto parte em todos os sentidos. Em termos de calendário, para evocar tanto 1960, como 1970, 1975 ou 1978. Mas fazendo igualmente referência à Rádio Altitude (da Guarda), como ao Posto Emissor do Funchal ou à Estação Rádio Madeira, ou ainda ao jornal Angola Desportiva lançado em 1930 ! Mas, mais uma vez, sem dizer nada sobre a evolução do grafismo dos jornais desportivos, do seus conteúdos, da escrita e da iconografia particulares que lhes são próprias, ou sobre as vendas. Sem indispensáveis dados e referências. Mas avançando até termos como “formato (41x29) mais reduzido” em vez de tabloide (p. 142) [2] ou mesmo um “moderno formato offset” (p. 147) … que nada têm de técnico !
Por fim, o capítulo intitulado “A imprensa na Revolução de Abril : refundar o quotidiano, estimular a crença e renovar o visualismo político” ( ! ) constitui um estranho texto… Começa por fazer “constatações” globais, sem avançar qualquer referência, quando as análises dos jornais franceses e italianos citados tinham que ser forçosamente diferentes. Um conjunto de jornais aliás extremamente curioso, unicamente de direita e mesmo até de direita radical : por que ter excluído do “corpus” Le Monde e Libération, L’Unità ou Il Manifesto, por exemplo ? Seguem-se parágrafos perfeitamente pomposos, pretensamente teorizantes, com pseudoanálises não fatuais, não documentadas, não referenciadas. Passando alegremente dos jornais para os postais ilustrados e para os cartazes, sem que haja um fio condutor para um texto que cai num “impressionismo” sem relação com o que deveria ser uma análise de caráter académico.
Desprovido de uma desejável conclusão final, A Revolução nos média peca, como se disse, pela ausência de um verdadeiro projeto de história dos média, com as especificidades próprias desta disciplina. O que supõe a definição de um quadro global, uma investigação aplicada com idênticos critérios científicos aos diferentes tipos de média (imprensa diária, imprensa semanal, rádio e televisão) e um prévio conhecimento pelos autores das caraterísticas particulares dos média e do jornalismo.
Na definição do “corpus” a ser estudado, haveria assim que analisar também a revolução de 1974-75 em jornais (bem mais importantes do que o República) como Diário de Notícias, O Século, O Comércio do Porto, Jornal de Notícias e/ou O Primeiro de Janeiro, nos matutinos, A Capital, Diário de Lisboa e/ou Diário Popular, nos vespertinos. E, para além de O Jornal, estudar também, paralelamente, os semanários Expresso e Tempo. Sem esquecer a Emissora Nacional e o Rádio Clube Português, para não falar nos Emissores Associados de Lisboa e nos Emissores do Norte Reunidos
Dir-se-á talvez que A Revolução nos média tem como mérito constituir uma primeira abordagem de uma matéria da história contemporânea portuguesa que tem sido inacreditavelmente, inconcebivelmente descurada. Pena é que esta primeira abordagem (ou mais exatamente : estas primeiras achegas) seja a tal ponto insuficiente e pouco promissora de uma futura história, bem mais completa e rigorosa…



[1] Maria Inácia Rezola e Pedro Marques Gomes (coord.), A Revolução dos média, Lisboa, Tinta da China, 2014, 200 p.
[2] Numa especificação tecnicamente correta, o formato é definido da seguinte maneira : 290 x 410 mm, a pequena dimensão devendo preceder a grande dimensão expressas em milímetros e devidamente separadas pelo sinal x :  simples questão de rigor…

Mensagens populares deste blogue

Deixem-me fazer uma confissão

Como é possível?!

O residente de Belém ganhou mesmo?