Outras facetas de uma crise
J.-M. Nobre-Correia
Política : Os europeus têm os olhos voltados para a Grécia. Até porque, para além dos
resultados do referendo, é o destino mesmo da União Europeia que se joga, mais
democrática ou sobretudo dominada por tecnocratas…
É uma evidência : a longa crise grega atual fará
data na história da União Europeia. Que mais não seja porque constituirá muito
provavelmente um marco à partir do qual se assistirá a uma aceleração de um
processo em curso. Ou a uma viragem decisiva neste mesmo processo. Com grandes
probabilidades que a primeira hipótese seja a mais plausível.
Em termos políticos, a atual crise grega põe em
evidência pelos menos quatro pontos. Primeiro : o facto de a democracia cristã (ou
cristãos-sociais) e a social-democracia (trabalhistas ou socialistas) terem
renunciado aos mais elementares princípios sociais e económicos que constituíam
as identidades específicas de cada uma dessas duas movimentações. De se
encontrarem cada vez mais desprovias de coluna vertebral política, esvaziadas
do mais são conteúdo ideológico. De terem alinhado no discurso dominante da
direita liberal em termos economicistas, em que a União Europeia passou a ser sobretudo
simples “mercado comum”, em que a mundialização (“globalização”, como eles
dizem) serve de pretexto a todas as postas em causa das históricas conquistas
sociais.
Uma deriva acelerada
Vejam-se por exemplo os comportamentos dos
democratas cristãos Angela Merkel, Wolfgang Schäuble ou Jean-Claude Juncker ou
dos sociais-democratas Martin Schulz ou Pierre Moscovici. A arrogância
intratável dos “diktats” de Merkel e de Schaüble, a lembrar os piores aspetos
da tenebrosa rispidez da cultura e da história alemãs. As tergiversações de
catavento em série de Juncker, personagem que, ministro das Finanças e primeiro
ministro (1989-2013), fez que o Luxemburgo se tenha afirmado como paraíso
fiscal e placa giratória de todas as negociatas e lavagens de dinheiro, bem
pouco em conformidade com apregoados princípios união-europeístas. O
inacreditável Schulz, presidente do Parlamento Europeu, que ousa preconizar a substituição
de um governo grego eleito por um governo de tecnocratas, ele que deveria ser o
primeiro a defender a preeminência do parlamentarismo em democracia. E um
Moscovici que rapidamente se esqueceu do seu precedente estatuto de ministro
socialista em França, para passar, na Comissão Europeia, a bom “père fouettard”,
castigador dos que não se submetem servilmente às regras do mundo dos affairistas.
A esquerda do tradicional “arco de governação”
europeu está pois em vias de fundição, como neve ao sol. Só as máquinas
colocadoras de militantes em lugares lucrativos dos serviços públicos ou mesmo
de empresas privadas continuam a funcionar sob o nome de partidos. Enquanto que
à esquerda desta antiga social-democracia, novo social-liberalismo, a fragmentação
é a caraterística reinante a nível europeu [1].
Entre extravagantes comunistas, inconsistentes ecologistas e errática nova
esquerda, nada se vislumbra de verdadeiramente alternativo, plausivelmente viável,
efetivamente operacional. Perante uma direita cada vez mais conservadora e até por
vezes reacionária, reforçada doravante pelo contributo inestimável da social-democracia,
a esquerda traduz-se agora numa proliferação largamente próxima do vazio. E é
esta a segunda constatação que a crise grega permite fazer.
Mas há uma terceira lição a tirar desta crise : a
de que os destinos da União Europeia estão cada vez mais entregues a tecnocratas desenvoltos
e arrogantes que escapam a qualquer controlo democrático (como a Comissão
Europeia ou o Banco Central Europeu, por exemplo). Ou que de pouco ou nada
servem, para além de simples papel de figuração (como o Parlamento Europeu). Tecnocratas
globalmente cooptados entre congéneres, em procedimentos bem pouco transparentes,
fazendo-se pagar altíssimos salários e usufruir de mordomias inimagináveis, propagandistas
incansáveis de discursos união-europeístas indispensáveis à sustentação do próprio
fundo de comércio [2].
Uma eurocracia incontrolada
São estes eurocratas constituídos em casta de
intocáveis privilegiados (aos quais poderíamos também juntar os tecnocratas do
Fundo Monetário Internacional) que impõem cada vez mais decisões aos
representantes democraticamente eleitos dos países membros da União Europeia. E
quando os eleitores “votam mal” (como já foi o caso na Dinamarca, em junho de
1992 [3],
ou na Irlanda, em junho de 2001 [4]),
a eurocracia obriga-os pura e simplesmente a recomeçar e a “votar bem” (em maio
de 1993 e em outubro de 2002, respetivamente), aceitando finalmente as
imposições de Bruxelas. Pondo assim em evidência a perda de valor da democracia
representativa e do voto dos cidadãos eleitores.
As estas três constatações poderia ainda
acrescentar-se uma quarta : a reunificação de outubro de 1990 veio dar à Alemanha,
para além mesmo do peso económico, um peso político que ainda não tinha conseguido
recuperar desde o fim da Segunda Guerra Mundial. E na tradicional aliança entre
a França e a Alemanha Federal, que estava precisamente na origem das
instituições que dariam nascimento à União Europeia, a primeira perdeu nitidamente
peso na cena europeia perante a pujança económica da segunda. Enquanto que o alargamento
da União Europeia a antigos “países de Leste” reforçou a posição geoestratégica
da Alemanha, nomeadamente numa Mitteleuropa onde historicamente a sua influência
cultural é sensível.
Esta perda de influência da França desequilibrou
notoriamente a tradicional partilha a dois da liderança da União Europa.
Deixando mais subalternizados os países do sul, particularmente os de uma
Europa latina que continuam a não perceber que só um indispensável entendimento
entre eles poderá reequilibrar a União Europeia. E levar assim esta a funcionar
de maneira mais harmoniosa, respeitando a diversidade dos seus povos e a vontade
expressa por estes em eleições democráticas e livres…
[1] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia,
“O deslize das placas tectónicas”, in Notas
de Circunstância 2, 6 de fevereiro de 2015.
[2] Durante longos anos, frequentei os meios
eurocratas de Bruxelas, tendo sido o primeiro correspondente de média portugueses
acreditado junto da Comissão Europeia.
[3] Em junho de 1992, os dinamarqueses
rejeitaram o tratado de Maastricht, que, modificado, adotaram em maio de 1993.
[4] Em junho de 2001, os irlandeses recusaram
ratificar o tratado de Nice, que vieram a adotar em outubro de 2002.