Entrever um futuro mais risonho…
J.-M. Nobre-Correia *
Num livro publicado em fevereiro do ano passado em França e acabado de ser
editado em Portugal, Julia Cagé faz uma análise da crise dos média de
informação e avança propostas para procurar ultrapassá-la…
Comecemos
por uma interrogação que espíritos apressados não deixarão de acusar de sexismo
: se Julia Cagé não fosse a jovem esposa de Thomas Piketty, o seu Salvar os média teria sido editado em tantas
línguas estrangeiras ? É que, pelo menos no que diz respeito às mais próximas
(francesa, a original, portuguesa, castelhana, italiana, inglesa), o livro de
Cagé e O Capital no século XXI de
Piketty, que obteve um enorme e justificado sucesso, são publicados pelos mesmo
editores. Pura coincidência ? E será também pura coincidência se Piketty
escreve o prefácio (sem dizer, é claro, que a autora é sua esposa) e isto figura
na capa do livro ?…
É
que, para quem acompanha mediamente o universo dos média e sobretudo da
imprensa, o livro de Cagé não traz grandes elementos de informação novos. Pondo
para mais essencialmente o acento na situação das imprensas francesa e
estado-unidense, esquecendo por demais as situações particulares bastante
diferentes de uma e de outra. E esquecendo quase totalmente as imprensas
europeias ou pelo menos as dos países histórica, económica e sociologicamente
mais próximos da francesa.
Não
quer dizer isto que o livro de Cagé seja desprovido de interesse, embora a
exposição dos argumentos não seja um modelo de síntese, de linearidade e de
limpidez. No fim de contas, o que Cagé nos diz é que a economia da imprensa
mudou substancialmente. Não apenas como consequência da crise financeira ou
mesmo do aparecimento da internet : a erosão dos investimentos publicitários na
imprensa data já da chegada da publicidade aos ecrãs de televisão. E ela
acentuou-se, é claro, com o aparecimento da internet, a gigantesca proliferação
dos emissores de informação que esta permite e o acesso gratuito à informação
que ela autoriza.
Só
que, como faz notar judiciosamente Cagé, a deslocação dos leitores das edições
em papel para as edições digitais não foi acompanhada de uma deslocação
idêntica em valor da publicidade. Com uma agravante : os jornais em papel
perdem publicidade e, por consequência, receitas, enquanto que os jornais
digitais continuam larguissimamente a não conseguir obter receitas
publicitárias ou de assinaturas suficientes. O que significa, num caso como no
outro, meios financeiros limitados e, consequentemente, redução das equipas de
redação indispensáveis para cobrir seriamente a atualidade. Situação que, tudo
leva a crer, será irreversível no caso dos jornais em papel e suficientemente
durável no que se refere aos jornais em linha.
É
aqui que Cagé, sem ser revolucionária, faz propostas com aspetos inovadores.
Nomeadamente quando propõe que os jornais (em papel ou em linha) sejam
incluídos no sector do conhecimento, onde se encontram “a cultura, o ensino
superior e a investigação” (p. 29). E proponha paralelamente “um novo modelo
económico e jurídico para os média do século XXI, um estatuto inovador de
‘sociedade de média’, no cruzamento da sociedade por ações e da fundação” (p.
111). Proposta a que é aliás consagrado o terceiro e último capítulo do livro
onde Cagé avança “um estatuto de ‘sociedade de média com fins não-lucrativos’,
a meio caminho entre a fundação e a sociedade por ações” (p. 121). Sociedade de
média alimentadas por financiamentos participativos “cuja alocação será
irrevogável” (p. 121), onde os direitos de votos seriam devidamente ponderados
entre os diversos acionistas, de modo a garantir a perenidade e a independência
do média.
No
contexto atual de crise generalizada dos média de informação (e não apenas da
imprensa), o livro de Cagé tem no mínimo a grande virtude de fazer um balanço
de situações irreversíveis, de avançar propostas “que permitam entrever um
futuro mais rosado para os média” [i]
e de sugerir que se abra o debate sobre uma temática “basilar do nosso ideal
democrático” (p. 152). Temática que nestas últimas semanas tem tomado uma
particular e preocupante acuidade na sociedade portuguesa, mas que os grandes
altos responsáveis sociais e políticos parece preferirem continuar a ignorar…
Julia Cagé
SALVAR
OS MÉDIA
Temas e Debate, 166 pp, 15,50 euros
* Professor emérito de Informação e
Comunicação da Université Libre de Bruxelles
[i] Ver outras propostas em torno desta
temática : J.-M. Nobre-Correia, « Incrementar a informação
regional », in JJ, Jornalismo e
Jornalistas, Lisboa, n° 37, janeiro-março 2009, pp. 28-31 e J.-M.
Nobre-Correia, « Repensar as estruturas » in revista em linha Notas de Circunstância, Fundão, n° 1, 5
setembro 2013.
Texto publicado no quinzenário JL Jornal de Letras, Lisboa, 16 de março de 2016, p. 32.