A inconfessável conivência
J.-M. Nobre-Correia
Média : Ambições diversas da “classe judiciária” levam-na a praticar “fugas” em
série para jornalistas “amigos”. Fazendo de “segredos de justiça” uma literatura
que pouco tem a ver com o “jornalismo de investigação”…
Diz a teoria que, em democracia, coexistem três
poderes : o legislativo, o judiciário e o executivo. Cada um deve ser autónomo
em relação aos dois outros. Só esta “separação dos poderes” é de natureza a
preservar o desejável bom funcionamento da democracia.
A esta teoria datando de há mais de dois séculos e
meio, vem depois juntar-se outra que pretende existir um “quarto poder” : o
“poder da imprensa”, designado hoje por “poder dos média”. “Poder” contestado
até porque não instituído como tal nas estruturas de um Estado de direito.
Havendo mesmo quem prefira chamar-lhe “contrapoder”.
Na realidade, nas democracias de pacotilha, o
poder executivo domina claramente o poder legislativo e o poder judiciário. Nas
democracias formais dos nossos dias, o poder executivo põe os partidos da
maioria às suas ordens no parlamento, deixando-lhes diminuta margem de
manobra e impondo-lhes votos favoráveis em toda e qualquer iniciativa
governamental.
Novas e antigas alianças
A evolução da relação entre o poder judiciário e o
poder executivo toma, quanto a ela, aspectos diferentes nestes últimos decénios.
Tradicionalmente na dependência do poder executivo (em termos de nomeações,
colocações e promoções), o poder judiciário tem procurado soltar-se das rédeas que
o entravavam, apoiando-se nos média. Procurando tirar proveito da proliferação
dos média, sobretudo a partir da desmonopolização dos sectores da rádio e de
televisão, e mais recentemente das numerosíssimas, variadas e incontroladas
iniciativas em linha. Procurando sobretudo tirar proveito da lógica da
concorrência desenfreada entre média e entre jornalistas, também estes
muitíssimo mais numerosos do que há uns 30-40 anos atrás.
Ora, nas democracias de pacotilha esta utilização
dos média é tanto mais cómoda que estes não só não existem enquanto “quarto
poder” como não existem enquanto “contrapoder”, dominados que são cada vez mais
pelo poder económico. Sobretudo se, como no caso português, a fragilidade dos
jornais (impressos, radiofónicos, televisivos ou em linha) faz que os meios
humanos sejam geralmente muitíssimo limitados e, por conseguinte, seja
extremamente reduzida a capacidade de pôr em prática um verdadeiro “jornalismo
de investigação”.
Os meios judiciários passam assim a utilizar os
média, alimentando-os com “fugas” discretas de elementos de informação da
instrução dos “dossiês”. Atitude que se pode explicar teoricamente pela
necessidade que os meios judiciários sentem em querer aumentar a própria margem
de manobra, tornando públicos “dossiês” e impedindo deste modo que o poder
executivo ou mesmo a hierarquia do poder judiciário (para não falar já nos mais
diversos grupos de pressão) possam travar e até impedir o prosseguimento normal
da instrução. Mas também, convém não esquecer, porque juízes, procuradores e
demais pessoal judiciário querem pôr-se em evidência, em valor, enquanto
“classe” ou, mais geralmente, enquanto personagens eminentes (ou que se
pretendem tal) desta “classe”.
Ora, é por demais evidente que esta “classe” não
vive num qualquer Olimpo, imune às vicissitudes terrenas, às opções
ideológicas, aos pequenos rancores ou às grandes sedes de vingança. Sobretudo
se conseguir apanhar nas suas redes um personagem que dispõe (ou dispôs) de um
poder considerável e até acabou com alguns “chocantes privilégios” da dita
“classe”. E ainda mais se ele se situar num campo teoricamente antagónico do conservadorismo
que carateriza tradicionalmente boa parte da “classe judiciária”.
Só que, por vezes, a “classe” “perde os pedais”,
perde o seu desejável autocontrole, e ultrapassa “os termos dos limites”.
Montando ou dando indicações para que possa ser montada uma formidável operação
mediática, de modo a que a detenção particularmente anómala do dito personagem seja
devidamente coberta por jornais e televisões amigos. De modo a que estes possam
preparar antecipadamente a “exclusividade”, com sobeja matéria para pôr
rapidamente no papel ou no ecrã. Haja embora depois alguns desagradáveis percalços
: a personalidade a deter não se apresenta no dia previsto mas só no seguinte à
noite, o semanário privilegiado é obrigado a retardar a sua “edição especial”
para dois dias depois [1]
; e embora o telejornal das 20h00 comece antes da hora normal, as “medidas de
coação” falham o provavelmente desejado efeito do “direto” à hora de jantar de cidadãos
sedentos de imagens e informações “espetaculares”.
Espetáculo e tirania
mediática
Esta montagem da operação mediática deixa pensar
que a “classe judiciária” não é afinal tão politicamente impune como quer
parecer. Até porque a detenção tem lugar em plena movimentação em torno da
convocatória de uma “candidatura cidadã” para as próximas eleições
legislativas, da convenção de um partido da oposição radical e do congresso do
principal partido de oposição do “arco da governação”. Isto é : em plena
mobilização de formações que se situam entre o centro-esquerda e a esquerda
radical, claramente opostas ao conservadorismo clássico da “classe judiciária”.
Pretendendo embora não fazer política, o ódio de estimação da “classe” leva-a (involuntariamente
?, “bien malgré elle” ?) a escolher o seu campo, esquecendo (momentaneamente ?)
tantos antigos e recentes “dossiês” ligados a gente no poder e adotando
claramente atitudes e decisões bem mais radicais em comparação com as que adota
com gente de quem, ao que tudo leva a crer, se sente mais próxima…
É claro que ninguém duvida que a “classe
judiciária” na origem do “acontecimento do ano” conheça bem um princípio de
base do jornalismo “light”, “very light”, praticado pela grande maioria dos média
portugueses : um acontecimento forte escamoteia, faz esquecer os acontecimentos
anteriores recentes. Os protagonistas dos escândalos em série dos amigos no
poder poderão pois dormir descansados ! Até porque, estejamos certos, o poder
executivo e os seus homens de mão nos partidos da coligação encarregar-se-ão de
alimentar os média amigos. E, no estreito cenáculo mediático português, os
média amigos são legião !…
Há realidades incómodas que convém sempre ter
presentes : em Portugal como em boa parte dos outros países, mas mais em
Portugal no que em muitos destes países, o pretenso “jornalismo de
investigação” é de facto e antes do mais um “jornalismo de revelação”. Pela boa
razão que é baseado largamente em inquéritos realizados por outros (meio judiciário,
polícia…) e fruto de “fugas”, sem que os jornalistas se interroguem sobre a
questão de saber o que motiva as fontes a tal generosidade, dando-lhes informações
sensíveis, sujeitas a “segredo de justiça”.
Situações há em que as “fugas” são provocadas
conscientemente, honestamente, de modo a impedir os entraves ao funcionamento
da justiça, em nome do Estado de direito essencial a uma sociedade democrática.
Mas é tempo que a hierarquia judiciária proceda a um inquérito aprofundado
sobre a origem intempestiva e em rajada de “fugas” em torno do chamado “segredo
de justiça”. Até porque, repercutidas pelos média, tomam muitas vezes
aparências de “jornalismo de delação” e até mais precisamente de “jornalismo de
denúncia”, em que o “presumido inocente” é executado pela guilhotina da tirania
mediática e da “vox populi” antes mesmo de ser condenado…
[1] O dito semanário justifica esta
« edição especial » afirmando perentoriamente que é “o único jornal
que dispõe de informação (pormenorizada) sobre as conclusões da investigação
feita ao ex-primeiro-ministro durante um ano”…
Uma versão abreviada deste texto foi publicada no diário Jornal de Notícias, Porto, 27 de novembro de 2014, p. 15.
Uma versão abreviada deste texto foi publicada no diário Jornal de Notícias, Porto, 27 de novembro de 2014, p. 15.