Entrevista : A propósito do meu recente livro


J.-M. Nobre-Correia foi sucessivamente investigador, assistente e professor no Departamento de Ciências da Informação e da Comunicação da Université Libre de Bruxelles, de 1970 a 2011. Regressado a Portugal, acaba de publicar Teoria da Informação Jornalísticana editora Almedina.
Qual a principal preocupação ao publicar uma obra que acaba por ser uma profunda viagem ao mundo do jornalismo?
A primeira preocupação foi de pôr na minha língua materna um livro que escrevi em francês e teve um total de 21 edições, com três títulos diferentes sucessivos que correspondiam aliás à própria evolução do título da cadeira de que fui professor titular nos anos académicos 1980-81 a 2010-11 na Université Libre de Bruxelles.
Por outro lado, penso saber que em Portugal os docentes do ensino superior passaram a ter por hábito propor bibliografias de livros e artigos em relação com a matéria de que são titulares, não redigindo eles próprios manuais que tratem dessa matéria. E daí que eu tenha pensado que seria possivelmente útil publicar um livro destes em Portugal, suscetível de interessar não só docentes e estudantes em jornalismo, mas também jornalistas que queiram refletir sobre a sua profissão, assim como simples cidadãos que se interrogam sobre a prática jornalística nos média.
Por fim, não me pareceu desprovido de interesse propor um livro sobre esta matéria numa perspetiva europeia (sobretudo francófona, mas não só), quando aquilo que se edita e lê em Portugal sobre esta matéria parece-me ser sobretudo de proveniência brasileira ou estado-unidense.
A que níveis considera que a liberdade de imprensa é hoje ameaçada?
Os média foram confrontados ao longo dos séculos (sobretudo a imprensa, também a rádio e a televisão) a práticas autoritárias da parte do poder civil como do poder religioso : censura (a partir de 1475), privilégio, autorização prévia…, toda uma série de mecanismos com vista a impedir que as pessoas tomassem conhecimento de informações que o poder queria absolutamente impedir que elas soubessem. Felizmente estes mecanismos de repressão desapareceram muito largamente nas nossas sociedades de Europa ocidental.
Mas a liberdade de circulação da informação é hoje confrontada a outros obstáculos. Com a proliferação dos média a partir dos anos 1960-80, o pluralismo dos média e da informação que tanto esperávamos deu de facto lugar a uma fragilização das redações. Assistiu-se então a uma gigantesca fragmentação das audiências. Pelo que os média passaram a dispor de menos receitas financeiras, em termos de vendas como de publicidade. Situação que foi ainda mais acentuada com o alargamento da internet ao grande público. E menos receitas significa menos meios humanos e menos disponibilidade financeira das redações para praticar jornalismo em termos de recolha, de verificação e de tratamento da informação.
Paralelamente, enquanto as redações perdiam capacidade de iniciativa, as empresas e instituições reforçavam cada vez mais os departamentos de comunicação e o recurso a assessorias especializadas, dispondo de meios muitos mais importantes do que os das redações. Estas passaram assim a aceitar “peças” (textos, ilustrações, sons, vídeos) vindas do exterior, desses departamentos e assessorias, concebidas em função dos interesses das empresas e instituições, ou dos seus mandatários, e não numa perspetiva de informação dos cidadãos.
Dito de outro modo : as redações deixaram de dispor do tempo e dos meios indispensáveis à cobertura de vastos aspetos da atualidade, que passaram assim a ser cobertos por não-jornalistas ao serviços de interesses que não são exatamente os dos cidadãos.
A prática do jornalismo de qualidade encontra-se ameaçada pela imediatidade da Internet? 
Sim e não ! Sim, na medida em que, como foi explicado na resposta anterior, há cada vez menos redações em condições de praticar um jornalismo de qualidade. Não, na medida em que a informação em tempo real praticada nomeadamente na internet, mas também em rádio e em televisão, pede cada vez mais que os cidadãos recorram a um jornalismo de qualidade na imprensa, na rádio, na televisão ou na internet para compreenderem a atualidade da sociedade em que vivem. Isto é : que recorram a um jornalismo de qualidade concebido com o devido recuo em relação aos acontecimentos, mas também com as devidas verificação, interpretação e análise dos factos, e as indispensáveis noções de competência, rigor e serenidade.
Num mundo globalizado e de distâncias entre regiões e povos cada vez mais curtos, ainda faz sentido em falarmos nos critérios geográfico, psicoafectivo e cultural no que toca à seleção da informação?
Claro que sim ! O mundo poderá ser cada vez mais uma “aldeia planetária”, mas nós sentir-nos-emos sempre mais interessados pela atualidade mais próxima de nós e dos nossos, mais afetados que somos pela atualidade que nos diz e lhes diz respeito.
O corte nas receitas publicitárias dos jornais impressos entrega a produção de notícias às agências de informação e aos fornecedores de conteúdos ou ainda é possível perspetivar organismos de comunicação social isentos e com uma demarcada linha editorial? 
A primeira agência de informação, Havas, nasceu em 1835. E ao longo da segunda metade do século XIX como durante todo o século XX, as agências de informação tiveram um papel cada vez mais importante na informação que era proposta pelos média. Até porque, depois dos “despachos” escritos, começaram a propor ilustrações e sobretudo fotos, mas também sons e vídeos.
Quanto àquilo que chama “fornecedores de conteúdos”, eles também existem há muitos decénios, desde os comunicados governamentais ou das forças armadas em conflito. A partir sobretudo dos anos 1960, os média europeus passaram também a receber cada vez mais comunicados de toda a ordem das mais diversas empresas e instituições, mas também de associações e de toda a espécie de organizações ou personalidades que consideram ter algo que deve ser anunciado aos média e levado ao conhecimento dos públicos destes.
Uma das caraterísticas dos jornais impressos de qualidade (como aliás dos jornais radiofónicos, dos telejornais ou dos jornais em linha de qualidade) é precisamente a de tomarem antes do mais a produção das agências de informação como a desses tais “fornecedores de conteúdos” como “alertas” que, depois de uma avaliação do interesse do tema evocado, os deverão levar a dar início a um trabalho de recolha de elementos fatuais, de cotejo destes com aqueles que os tinham alertado, de verificação desses elementos, antes de passar às etapas seguintes habituais do tratamento da informação.
Perante as dificuldades financeiras dos jornais impressos — particularmente acentuadas com a deslocação de boa parte da publicidade para a internet a partir da segunda metade dos anos 1990 e depois com a crise financeira dos anos 2007-08 —, temos que constatar que são os melhores jornais de referência diários ou semanais, “isentos” e com “uma demarcada linha editorial”, para utilizar os termos mesmo da pergunta, aqueles cuja leitura continua a ser indispensável para os meios dirigentes e para os meios sociais com um certo nível cultural e poder de compra. São aliás estes jornais de referência que resistem melhor, nalguns casos reforçando mesmo as suas posições em termos de vendas e de receitas, alcançando até audiências que nunca tinham atingido anteriormente. Porque, para além da informação bruta, puramente fatual, estes meios sociais precisam que esta informação seja posta em perspetiva, interpretada e comentada, para poderem fazer a sua própria opinião e decidir da conduta a tomar perante a atualidade.
Quais são os problemas decorrentes de uma homogeneização daquilo que é noticiado e da forma como é noticiado pelos diferentes meios de comunicação?  
A resposta foi de certo modo já abordada na resposta à pergunta anterior. Assistimos progressivamente a uma incontestável enorme homogeneização dos conteúdos propostos por média desprovidos de redações suficientemente importantes em termos de meios humanos e financeiros. Mas assistimos também cada vez mais a um decantação das especificidades de cada um, de modo a que os mais originais em termos de conteúdos propostos, tanto no que diz respeito aos temas como às formas de os tratar, se afirmam melhor perante a vasta massa cinzentona dos que propõem mais ou menos a mesma coisa dos outros. O que implica também um reposicionamento perante a nova geografia dos média tradicionais e dos novos média, até porque as gramáticas jornalística, comercial e técnica de cada um deles são manifestamente distintas.
Como perspetiva o futuro da imprensa escrita?
O termo “imprensa escrita” é utilizado de maneira demasiado imprecisa, pois designa quase sempre as publicações impressas, periódicos não-diários e diários. Quer dizer : publicações impressas em papel saídas de rotativas, de prelos. Mas a “imprensa escrita” é publicada cada vez mais em linha, na internet, algumas publicações tendo mesmo renunciado à imprensa, à edição em papel, como foi recentemente o caso do Diário de Notícias, com exceção da edição dominical (mas os exemplos de diários que passaram a ter unicamente edições em linha abundam por essa Europa fora, em Espanha, em França, na Grã-Bretanha, na Itália…).
A questão que se põe é a de saber se esta imprensa escrita, outrora editada  exclusivamente em papel, compreenderá que o papel e a internet são suportes de natureza diferente que supõem um tratamento jornalístico diferente, até porque, que mais não seja, a internet permite uma coexistência de textos, imagens fixas, sons e imagens animadas. Mas também porque a internet supõe um ritmo de publicação diferente, eventualmente com edições pluridiárias (…como a imprensa escrita em papel fez até aos anos 1960 !). Como supõe ainda compreender que a economia do jornal em papel e a do jornal em linha são muito diferentes, exigindo uma gestão diferente em termos de vendas, assinaturas, publicidade e atividades lucrativas diversas…

Texto publicado na "newsletter" do NewsMuseum, Sintra, 3 de agosto de 2018.

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