A indispensável dupla estratégia

J.-M. Nobre-Correia
Os tradicionais obstáculos ao desenvolvimento da imprensa em Portugal desapareceram. Há agora que definir novas ambições…
Sabemos hoje bem porque é que a imprensa em Portugal foi sempre fraca em relação à congénere de outros países da Europa ocidental. Porque bastante mais tardia do que a dos países pioneiros em matéria de mensários, de semanários ou de diários. Porque confrontada a um analfabetismo de 82,4% em 1878 e que ultrapassa ainda os 20,0% em 1970, quando havia populações totalmente alfabetizadas em fins do século XVII na Alemanha, por exemplo. Porque a distribuição deparava com a falta de comunicações fáceis com “o interior”, não sendo as publicações postas à venda em todas as localidades. Porque, fora da área costeira de Braga a Lisboa, as tipografias capazes de produzir diários ou periódicos de uma certa importância praticamente não existiam. Porque a grande maioria da população vivia numa economia de subsistência e o jornal era então um produto de luxo.
Quando os grandes diários de fins do século XIX princípios do século XX que eram o Diário de Notícias e O Século atingiam tiragens de 80 mil exemplares, em França, que publicava então os maiores diários europeus, Le Petit Journal e Le Petit Parisien ultrapassavam já, um e outro, o milhão. O que, mesmo ponderando tais números em função das demografias, dá uma ideia mais precisa da modéstia da imprensa portuguesa. A estas fragilidades congénitas vêm depois juntar-se três situações que refrearão fortemente o seu desenvolvimento: a instabilidade crónica da Primeira República, a repressão obscurantista do Estado Novo e a destruição de quase todas as velhas instituições da imprensa nacional no início da Segunda República, logo a seguir à Revolução dos Cravos.
Porém, as infraestruturas do país e a própria sociedade evoluíram consideravelmente nos últimos quarenta anos. Enquanto, durante este mesmo tempo, as tecnologias de informação e de comunicação foram objeto de uma autêntica revolução. O que quer dizer que os obstáculos ao desenvolvimento da imprensa em Portugal desapareceram. Resta a tradicional falta de hábitos de leitura por parte dos cidadãos. Mas resta também a devida adequação das estratégias de desenvolvimento das empresas às novas potencialidades tecnológicas. Estratégias que — para além do reforço do conteúdo, em termos quantitativos como qualitativos — têm que afirmar-se em dois sentidos aparentemente opostos, mas igualmente indispensáveis.
A primeira destas estratégias consiste em sair do tradicional posicionamento dito “nacional” que é de facto antes do mais centro-norte litoral, para não dizer mesmo lisboeta ou portuense. Ir à conquista dos leitores “do interior”, que (como provam as vendas em banca) recusam largamente um conteúdo atual que não lhes diz respeito. Criar para isso edições digitais locais-regionais, reforçando fortemente as componentes informativa e publicitária próprias a estas edições. Como fazem, por exemplo, os italianos Corriere della Sera e La Repubblica.
A segunda estratégia, sobretudo para a imprensa “de referência”, consiste em ir à conquista de um leitorado à escala planetária. Criando de preferência edições digitais para a América, a África e a Ásia-Oceânia, onde vivem tantos lusófonos. Propondo-lhes também uma informação e uma publicidade específicas. Propondo-lhes, em todo o caso, uma informação de origem europeia sobre Portugal e o Mundo, e sobretudo sobre uma União Europeia que, apesar de tudo, conta cada vez mais a nível internacional. É isso que fazem, segundo modelos diferentes, o espanhol El País e o francês Le Monde, por exemplo. Numa perspetiva aliás mais alargada, não é chocante que tenha sido El País a lançar em 26 de novembro de 2013 uma edição diária digital em português destinada ao Brasil?!
Para sair da miséria que é historicamente a sua, e que é cada vez mais a sua atualidade, a imprensa portuguesa tem que deixar de olhar unicamente para o seu umbigo. Tem que deixar de pensar tomando como referência o que foi feito no país num passado mais ou menos recente. E de tomar como exemplo individualidades que, de facto, raramente ultrapassaram uma dimensão paroquial. Há que se inspirar no que de melhor se faz nesta Europa de que queremos fazer parte, o que só realmente conseguiremos se dispusermos de uma imprensa de nível europeu…
Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles, autor do livro Média, Informação e Democracia (Almedina).

Texto publicado no diário Público, Lisboa, 30 de janeiro de 2020, p. 13.

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