Uma urgência a não ignorar
J.-M. Nobre-Correia
Globalmente, a paisagem mediática portuguesa é pobre e pratica um jornalismo que não está à altura das necessidades da democracia…
Há como que um mistério na chamada “Contemporaneidade” portuguesa: como é que um povo pôde viver mais de dois séculos sem uma informação de qualidade? E sobretudo sem uma informação suficientemente difundida por entre a população? Três primeiras explicações saltam aos olhos: a alta e duradoira taxa de analfabetismo, alargada a uma instrução reduzida e manifestamente deficiente; um poder de compra que também ele foi durante longos decénios reduzido, fazendo desde logo dos jornais e dos recetores de rádio e de televisão produtos de luxo; um clima político repressivo em diversas fases da história, impedindo a afirmação de uma prática jornalística livre e de uma informação de qualidade.
Mas estas explicações liminares não respondem a outra interrogação: como é que, globalmente, ao longo destes mais de dois séculos, os meios dirigentes deste país não sentiram a necessidade de dispor de uma informação de qualidade, abundante e plural para melhor exercerem as suas próprias funções de direção? Interrogação tanto mais pertinente que, até aos anos 1990, grosso modo, o acesso a média estrangeiros foi bastante difícil e limitado.
Resta-nos uma explicação particularmente desagradável: os meios dirigentes deste país foram-se concentrando ao longo dos séculos na “capital do império”, onde círculos de poder diversos se foram habituando a reinar sem prestar contas ao resto do país. E pior do que isso: interiorizaram um modelo de governação que não só ignora largamente a população, como prefere mantê-la longe dos corredores do poder, das suas manobras, negociações e decisões. O que explica o desinteresse profundo dos meios dirigentes em relação à situação de subdesenvolvimento atroz dos média em Portugal e da preocupante insuficiência da informação que praticam. E o constante desinteresse dos meios governamentais que se têm sucedido no poder da atual Segunda República[1] é terrivelmente significativo disso.
Porque Portugal vive de facto num inaceitável estado de subdesenvolvimento em matéria de média de informação jornalística, particularmente evidente no que diz respeito à imprensa escrita (em papel ou em digital). São raros os diários nacionais como os regionais, sendo as difusões (circulações) de todos eles inconcebivelmente baixas num país com a dimensão demográfica que é a sua. E, embora os periódicos (não diários) sejam relativamente numerosos, as difusões são igualmente bastante reduzidas e até mesmo, em muitos casos, insignificantes.
A própria paisagem mediática dita “nacional” (imprensa, rádio, televisão e média em linha) está unicamente sediada em Lisboa, com uma pequena exceção no Porto, sendo o resto do país um desolador deserto. Um duplo deserto aliás: nenhum média “nacional” emana deste resto do país e a pretensa imprensa “nacional” pouco se vende na chamada “província”. Enquanto jornais, rádios e televisões com origem na “província” praticam um jornalismo particularmente pobre. Uma situação que tem tendência a acentuar-se, dada a evolução atual dos investimentos publicitários nos chamados média “tradicionais”.
Ora, uma democracia no pleno sentido do termo supõe cidadãos bem informados e meios dirigentes dispondo de elementos fatuais de informação e de análise que permitam a uns e outros tomar as decisões que lhes parecem impor-se. O que pressupõe a existência de uma paisagem mediática diversificada e plural, mas também redações numerosas e competentes. Porque um dos dramas dos média de informação jornalística em Portugal é a pobreza das redações, em termos quantitativos como de especializações. O que se traduz por conteúdos editoriais bem mais reduzidos do que os de confrades com posicionamentos comparáveis noutros países da Europa. Mas também por conteúdos menos substanciais, tratados quantas vezes por jornalistas que passam, por exemplo, de uma área geopolítica para outra de um continente diferente, de um tema médico-hospitalar para outro sobre um caso judicial, de uma guerra no estrangeiro para um fogo de floresta. Uma larga ausência de especialistas a que vem acrescentar-se uma escassez de correspondências e de reportagens no interior do país como no estrangeiro que, quando realizadas, revelam quase sempre uma manifesta falta de meios técnicos e humanos. O que é particularmente evidente em audiovisual, o jornalista mantendo-se longe do acontecimento, enquanto as gravações e as montagens prévias são extremamente raras.
Tal escassez de meios financeiros, técnicos e humanos, aliada a formações académico-profissionais muito discutíveis, faz que os jornais sejam muitas vezes meros canais amplificadores do que foi produzido pelas assessorias mais diversas (ministérios, partidos, ordens, sindicatos, corporações, polícias, bombeiros, autarquias…), quantas vezes sem que a mais elementar distância, a desejável verificação e o salutar sentido crítico tenham sido exercidos. Vêm juntar-se-lhes despachos, sons e imagens propostos por agências de informação, muitas vezes unicamente a portuguesa Lusa, por vezes também as britânico-estado-unidenses, com o que isso significa como visão da atualidade no mundo. Um conjunto de conteúdos ou perspetivas de conteúdos acolhido como maná por redações e que as leva a produzir jornais exageradamente monotemáticos-folhetinescos (covid, fogos, Ucrânia, urgências hospitalares…).
Para que Portugal possa de facto vir a ser um membro entre os melhores da União Europeia nesta matéria, é pois urgente que o seu sistema mediático e o tratamento da informação sejam repensados. Mas, numa perspetiva puramente liberal, a sociedade portuguesa sendo o que é e tem demonstrado ser, haverá provavelmente pouco a esperar dos meios económicos em termos de iniciativa, ab ovo, a última tendo sido a criação do Público pelo grupo Sonae em 1990, há 32 anos. Aos poderes legislativo e executivo de tomarem pois iniciativas de modo a incrementarem as indispensáveis evoluções. Criando uma fundação dotada de um fundo capaz de permitir o financiamento parcial de iniciativas provenientes dos meios editoriais e jornalísticos com vista a criar novos média de informação ou a reforçar iniciativas (jornalísticas e promocionais) de média existentes. Este fundo proviria do Estado e da União Europeia, mas também de empresas, instituições ou pessoas privadas, como consequência de uma legislação fiscal favorável às doações à fundação. Da mesma maneira que uma legislação devidamente adequada deveria garantir a independência e a sua não recuperação por criaturas partidárias notoriamente incompetentes na dupla matéria mediática e jornalística.
A entrada de Portugal na rota de um verdadeiro progresso democrático, quase meio século depois do 25 de Abril, depende largamente do estatuto que soubermos dar aos média de informação e à sua prática jornalística. Os meios dirigentes responsáveis do país não podem continuar a ignorá-lo…
[1] De 1926 a 1974, Portugal viveu em Ditadura e não em República.
Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles, autor do livro “História dos Média na Europa” (Almedina).
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