Entrevista no quinzenário "JL Jornal de Letras"

J.-M. Nobre-Correia


Após os seus vários livros sobre a informação e a comunicação na Europa, o que o levou a escrever este Média e jornalismo em Portugal e como o situa em relação às suas obras anteriores?

Sem falar dos meus livros em francês, os meus quatro precedentes livros em português tinham antes do mais um caráter académico. Este quinto livro é sobretudo uma abordagem da situação dos média e da prática jornalística em Portugal pelo cidadão estrangeirado por mais de 45 anos de residência em Bruxelas e retornado ao país de origem. Um regresso que me tem deixado perplexo perante a pobreza da paisagem mediática portuguesa e as caraterísticas bastante insatisfatórias do jornalismo que por cá se pratica. Este novo livro é pois uma espécie de diagnóstico crítico da situação em Portugal, partindo nomeadamente do que escrevi sobretudo nas minhas História dos média na Europa e Teoria da informação jornalística, editadas pela Almedina.

Durante muito anos, e enquanto ensinava na Université Libre de Bruxelles, fez regularmente análises dos média e da informação na imprensa portuguesa, designadamente no Expresso. Porque deixou de o fazer, ou não o voltou a fazer, inclusive depois de voltar a viver no nosso país?

Fiz semanalmente análise primeiro no Público (1990), depois no Expresso (1994-2002) e por fim no Diário de Notícias (2008-2014), e antes disso, durante anos, em magazines belgas francófonos. A direção do Público, em finais do seu primeiro ano de existência chegou à conclusão que o jornal vendia muito menos do que o que tinha previsto e portanto suprimiu uma série de colaborações pagas. No Expresso, a direção quis também suprimir custos, porque as receitas publicitárias tinham diminuído, diziam eles, e decidiu que a rubrica semanal passaria a quinzenal, sem se darem conta que, para além da crónica de 3000 carateres havia sempre uma série de breves de 1500 carateres que não tinha sentido nenhum serem publicadas só quinzenalmente. Perante este reparo de caráter técnico, o diretor de então achou por bem dizer-me, num tom que me pareceu ameaçador, que discutiríamos na “rentrée” da continuidade ou não da rubrica, o que me levou a cessar imediatamente a minha colaboração. No Diário de Notícias, foi o novo diretor que, mais uma vez, quis reduzir custos e me pediu para eu ir a Lisboa para conversar comigo sobre o assunto (imaginei eu então que seria para me propor uma colaboração gratuita) …e mandou a secretária dele desencomendar o encontro na manhã do próprio dia, quando eu já estava de propósito em Lisboa! Depois destes três episódios, se não voltei a escrever regularmente sobre a área das minhas formação, investigação e docência é porque nenhum jornal português tem manifestado interesse em tal matéria e em tal colaboração.

Este livro situa-se na lógica e sequência dessa atividade? Como se encontra organizado/estruturado e qual o seu principal objetivo ao escrevê-lo e publicá-lo?

Sim: na lógica e sequência desta atividade e sobretudo do que foram os meus anos de investigação e ensino nas universidades de Bruxelas (1970-2011), de Paris II (1996-2006) e de Coimbra (1996-2001). O livro encontra-se sobretudo estruturado em quatro capítulos: a desequilibrada e frágil paisagem mediática portuguesa; o aparecimento tardio de uma formação discutível nesta área; as características que ficaram do que foi o jornalismo militante no pós-25 de Abril; a urgente necessidade de uma política dos média. O meu objetivo ao escrevê-lo foi tentar alertar os dirigentes políticos, económicos e socioculturais do país para uma situação inaceitável num país da Europa ocidental e uma situação inquietante no que diz respeito ao funcionamento da democracia. Infelizmente, ao longo dos meus mais de 30 anos de escrita regular na imprensa portuguesa sobre esta área, fui obrigado a constatar uma espantosa e preocupante indiferença dos meios dirigentes perante tal situação e, mais preocupante ainda, uma grande apatia por parte dos profissionais dos média e do jornalismo perante esta mesma situação.

Como pode descrever/comentar, muito em síntese, a situação do tema do seu trabalho – os média e o jornalismo em Portugal?

Esquematicamente, procuro pôr em evidência a fragilidade da paisagem mediática com pouquíssimos diários de âmbito nacional, todos publicados em Lisboa e um único no Porto, diários regionais quase unicamente limitados à orla costeira de Braga a Lisboa, todos estes diários com níveis de venda inacreditavelmente baixos. Com rádios e televisões de caráter nacional unicamente sediadas em Lisboa, e complementarmente no Porto. Com média que ignoram largamente o que se passa no “interior” do país e que quase não contam com correspondentes nos países com uma importante presença portuguesa e nos que contam nos destinos do mundo. Com média que propõem uma informação quantitativamente escassa e de qualidade globalmente insuficiente, até porque as equipas de redação são inacreditavelmente reduzidas, dispondo de meios técnicos e financeiros igualmente reduzidos, e com níveis de formação teórica e profissional manifestamente discutíveis…

Há diferenças sensíveis, e quais as principais, entre o jornalismo que se pratica na imprensa escrita, na televisão, na rádio, e através da internet?

O jornalismo escrito (em papel ou em linha) é em princípio mais rico em termos factuais como em termos de exposição e de argumentação. Enquanto o audiovisual, e sobretudo o televisivo, é mais favorável à emoção, continuando porém a ser o que alcança mais largos públicos. Na internet encontramos de tudo, da excelente informação que permite um acesso quase imediato a uma rica documentação complementar, como uma informação não jornalística desprovida da mais elementar verificação prévia, como uma larga participação dos cidadãos que se pode transformar num debate de informações e ideias interessante como num dilúvio de aldrabices e instrumentalizações.

A internet e as redes sociais em geral são uma ameaça e estão a pôr em perigo um autêntico jornalismo?

As falsas notícias voluntárias ou involuntários como as instrumentalizações mais diversas sempre existiram desde o aparecimento da imprensa escrita no século XV. A “ameaça” só é maior hoje em dia porque o número dos que têm a possibilidade material de divulgar o que cogitaram é sem comparação com o que se passava com os meios de comunicação tradicionais, a internet permitindo-lhes também teoricamente de atingir uma audiência em todos os cantos do planeta, o que também não era o caso antes com os média tradicionais. É claro que as chamadas “redes sociais” constituem uma ameaça, mas constituem também uma oportunidade de afirmação do jornalismo que fará a diferença graças à sua informação recolhida, verificada, enriquecida com outros elementos de informação, posta em perspetiva, analisada e até com tomadas de posição editoriais que permitirão aos cidadãos melhor orientar-se nas suas vidas quotidianas e nas tomadas de decisões a que são confrontados.

Como, em sua opinião, combater as “pragas” associadas à internet, mormente as fake news e similares?

Em termos de democracia, dotar os Estados democráticos (e a União Europeia) de mecanismos jurídicos e de instituições competentes e independentes capazes de fazer frente a tais “pragas”. Mas, em termos jornalísticos, há sobretudo que reforçar a factualidade, a qualidade e a credibilidade do tratamento da atualidade (imediata e intemporal) proposto aos cidadãos.

As dificuldades do jornalismo de qualidade, em especial da imprensa escrita, são cada vez maiores, com a generalidade das empresas em situação económica muito difícil, se não desesperada ou mesmo “irremediável”. Quid juris? O que pensa pode/deve ser feito, em particular pelo Estado, para o remediar, ou contribuir para o remediar?  

No meu entender, há uma urgência absoluta: a criação de uma fundação incontestavelmente independente e competente, dotada de meios financeiros importantes, de modo a apoiar iniciativas de reforço dos média existentes e a fomentar o pluralismo da informação com a criação de novos média. Num dos capítulos de Média e jornalismo em Portugal faço propostas precisas, uma boa parte das quais eu já tinha avançado noutro meu livro anterior, Média, informação e democracia, e que procurei atualizar em função da rápida evolução tecnológica no sector. Esquematicamente, há que reforçar quantitativa e qualitativamente as equipas de redação existentes, e dar-lhes meios humanos, técnicos e financeiros para praticarem a investigação, a grande reportagem e a análise especializada. Reforçar também a distribuição, a promoção das vendas, a angariação de assinaturas e de publicidade, assim como a gestão quotidiana. Favorecer meios financeiros para que novas equipas de jornalistas e de gestores possam lançar novos média de informação geral sobretudo “no interior”, fora da tradicional orla litoral…


Texto publicado no JL Jornal de Letras, Lisboa, 20 de setembro de 2023, pp. 1, 27 e 28.

 


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