De uma democracia para a outra
Política : Olhando em redor, a sensação é cada vez mais clara de que andam por aí muitos
altos (ir)responsáveis políticos que sonham ostensivamente com uma
reconstituição quanto possível dos tempos “da outra senhora”…
Tendo residido mais de 45 anos no estrangeiro e
vivendo em Portugal apenas há pouco mais de três anos e meio, o que me
impressiona regularmente é a apatia do povo português, o amorfismo em que vive
a sociedade portuguesa. Mas também me impressiona a assustadora indiferença com
que o resto do mundo assiste ao que se passa em Portugal.
Noutros países europeus de velha tradição
democrática, perante os dois últimos discursos de Aníbal Cavaco Silva, em
véspera de eleições e sobretudo por ocasião da indigitação de Pedro Passos
Coelho como primeiro ministro, e perante as delongas que Cavaco Silva está a
adotar após a queda do governo minoritário PSD-CDS, teria havido reações
violentas. Uma e outra e outra organizações provenientes da sociedade civil,
uma e outra e outra personalidades do mundo sociocultural teriam tomado a
iniciativa de (pelo menos) uma grande manifestação de massa diante do Palácio
de Belém, em protesto contra as repetidas atitudes militantes intoleráveis daquele
que deveria ser “o primeiro magistrado da nação”, isento, guardião do Estado de
direito.
Este “país
de brandos costumes”
Mas, em Portugal, "país de brandos
costumes", reina uma preocupante indiferença. A permanente e sufocante
ameaça salazarista que, durante quase meio século, aconselhava, impunha, ficar
muito caladinhos, muito sossegadinhos, continua manifestamente a produzir
frutos… Enquanto que a direita se vai radicalizando a olhos vistos e
perpetrando uma e outra golpadas, ignorando soberanamente as leis e a
Constituição que nos regem.
Tendo residido mais de 45 anos em Bruxelas, nunca
por nunca ser experimentei, como agora, qualquer sentimento de inquietude
perante as perspetivas de evolução da cena política. Na Bélgica, as alianças
entre partidos sempre foram negociadas depois de serem conhecidos os resultados
eleitorais e quantas vezes configuradas de maneira totalmente imprevista. Pelo
governo nacional (agora chamado federal [1])
passaram partidos de direita, do centro e de esquerda, regionalistas,
federalistas e até mesmo separatistas, por vezes com simpatias de extrema
direita mais que duvidosas. Para não falar em crises que atravessaram ao mais
alto nível a própria monarquia e muito seriamente a abalaram. Ou nas
gigantescas manifestações de cariz belga ou europeu que deixaram por vezes o
centro de Bruxelas transformado num sinistro mar de destroços.
E no entanto, nunca nesses longos, longos anos
na “capital da Europa”, tive o sentimento que um “golpe de Estado” palaciano
era possível. Que ignóbeis insinuações e manipulações fizessem lembrar negros
momentos da propaganda política dos anos 1920-40. Que as confrontações físicas
entre personagens, militantes e forças políticas fossem possíveis. Que algo
poderia fazer resvalar seriamente a democracia parlamentar belga para
recônditos obscuros de um temível regime político autoritário.
Vivendo em Portugal apenas há pouco mais de
três anos e meio, sente-se que o discurso e a prática política dos governos de
Pedro Passos Coelho se têm radicalizado de maneira particularmente inquietante,
ignorando totalmente a existência de uma oposição. E que esta radicalização é
ainda mais notória desde as eleições legislativas de 4 de outubro. Com uma inacreditável
“crescendo” da violência verbal e uma arrogante desenvoltura perante as leis do
Estado de direito e os preceitos da Constituição. O que tem tornado ainda mais
transparente a ambição devoradora das correntes extremistas neoliberais e
neoconservadores que têm dominado nestes últimos anos o PSD e o CDS, visando claramente
uma substancial reconquista de posições que foram as dos meios dominantes do
antigo regime, antes do 25 de Abril.
Estes
“amigos” que nos ignoram
À primeira vista, parece estranho, muito
estranho, que os média e os meios políticos da União Europeia se mantenham
particularmente alheios ao que se passa em Portugal e sobretudo à evolução da sua
situação política. Só que os média por toda a Europa dispõem cada vez de menos
meios humanos e financeiros para cobrirem a atualidade estrangeira. E, por
outro lado, esses mesmos média estão cada vez mais sob o controlo dos meios
industriais e financeiros [2]. Os
mesmos meios cujos interesses constituem de facto a primeira preocupação das
diversas instituições da União Europeia, cada vez mais transformada em simples
“mercado comum”. Pelo que não contemos que esses média e meios políticos venham
reforçar o baluarte que terá que ser erguido, se quisermos que a democracia
política, económica e social possa ser cada vez mais realidade no Portugal do
pós-25 de Abril…
[1] A Bélgica conta um governo federal e
cinco governos regionais ou comunitários.
[2] Ver a este propósito, J.-M.
Nobre-Correia, “Presse : l’aube d’un nouveau monde”, in Politique revue de débats, Bruxelas, n° 91, setembro-outubro de
2015, pp. 16-18. Texto publicado também in Notas
de Circunstância 2, 4 de setembro de 2015.