Os catalães, os média e a Bélgica
J.-M.
Nobre-Correia
Política :
O debate em torno da atualidade catalã tem sido objeto de uma informação pouco
cuidada e bastante instrumentalizada. Quando o que está em questão é o direito
de um povo escolher o seu destino…
Três
razões me levaram a aceitar a proposta de intervir nesta sessão consagrada à
Catalunha.
Quando especificidade e identidade são
incontestáveis
A
primeira : a perceção que eu guardei dos meus primeiros contactos há
vinte-trinta anos com colegas professores e investigadores de diferentes
autonomias de Espanha, assim como das minhas estadias em diversas autonomias
desta mesma Espanha.
Duas
situações me impressionaram. Nos meios universitários, todos os meus colegas
falavam entre si em basco, em catalão e em galego, o castelhano só sendo
utilizado no diálogo entre universitários de autonomias diferentes. Mas na rua,
e contrariamente ao que pensava antes, tanto em Bilbao como em Pontevedra, a
maior parte das pessoas falavam castelhano. Enquanto que na rua, em Barcelona,
falava-se muito em catalão.
Mais
do que isso : quando eu procurava falar no meu castelhano globalmente aceitável
com os meus colegas de Barcelona, eles, sabendo de onde eu vinha, respondiam-me
em francês. O mesmo me acontecia nos restaurantes (onde raramente havia cartas
em castelhano) e nos comércios de Barcelona, perguntavam-me qual era a minha
origem e falavam-me simpaticamente num francês quase sempre manhoso…
Pequena
nota pontual significativa : estava eu precisamente em Barcelona no verão de
2000, quando foi anunciada a “traição” de Luís Figo que deixava o Barça para ir
para o Real Madrid ! É preciso ter visto os diários de Barcelona desse dia e
ouvir o que se dizia nos cafés, nos restaurantes ou mesmo na FNAC local : uma
verdadeira traição deste cidadão de um país pelo qual os catalães tinha tanta
simpatia e que a Catalunha tanto queria tomar como modelo de independência em
relação a Espanha. Dizem aliás amigos catalães que o monumento que mais admiram
em Lisboa é o monumento aos Restauradores !…
Para
mim, a especificidade da Catalunha e a identidade cultural dos Catalães são
desde essa altura incontestáveis. E a reticência em falarem castelhano e, mais
do que isso, a hostilidade em serem tomados como espanhóis ou pelo menos em
serem tomados como castelhanos, pareceu-me sempre evidente da parte dos meus
colegas e amigos catalães.
Quando os média se mostram claramente militantes
A
segunda razão : a recente atualidade catalã provocou lamentáveis derrapagens no
mundo do média. Sobretudo na imprensa de Madrid, onde os quatro diários
generalistas ultrapassaram tudo o que era imaginável em matéria de sectarismo,
de militantismo, de espanholismo.
É
certo que o espanholismo era perfeitamente esperável da parte de jornais de
direita reacionária como La Razón, de
direita conservadora como ABC ou de
direita pretensamente liberal como El
Mundo. Mas esperava-se um espanholismo mais frio, mais distante, mais sereno
da parte de El País, que foi um
jornal de centro esquerda, que o é cada vez menos desde há alguns anos e que
caiu desta vez num militantismo ferozmente anti-catalão.
Ora,
é nestes jornais de Madrid que os média portugueses se “inspiraram” nesta
matéria como em muitas outras matérias (para não dizer outra coisa…),
esquecendo a existência de diários catalães, dois deles publicados em Barcelona
mas de caráter dito “nacional”, bem mais equilibrados e ponderados do que os de
Madrid.
Diga-se
desde já que esta maneira de tratar a atualidade estrangeira é bastante
frequente : quando algo de importante se passa num país estrangeiro, os média e
sobretudo os média “de referência” de outros países começam por consultar os
média do país onde têm lugar os acontecimento para recolherem elementos de
informação e de interpretação. Atitude que leva a uma repetição de dados
pretensamente factuais e a argumentos de análise, sem que haja de facto, na
maior parte dos casos, o menor cuidado em verificar o que foi avançado pelos
média do país de origem dos acontecimentos…
Vimos
assim, média de primeiro plano em Espanha perder toda e qualquer credibilidade,
e arrastarem de certo modo com eles os média portugueses, nomeadamente no plano
da argumentação desenvolvida em torno da legislação e da constituição
espanholas. Esquecendo demasiadamente os média portugueses que a atual situação
espanhola nestas duas matérias resultaram largamente da vontade de Francisco
Franco e de uma “transição” largamente conduzida por antigos quadros do
franquismo…
E
não foram apenas as argumentações legalistas e constitucionalistas madrilenas
que foram amplamente repercutidas pelos nossos média, como o foram certos
termos intencionalmente pejorativos como o de “fugitivos”, de “gente com falta de
coragem” e até mesmo de “gente cobarde” quando se referiam ao presidente e aos
quatro ministros que resolveram refugiar-se na Bélgica…
Quando se esquecem as particularidades da
Bélgica
E
esta é a terceira razão da minha presença aqui : a minha origem belga. Os mais
de 45 anos que vivi em Bruxelas, onde fui oficialmente refugiado político. E as
parvoíces que por aí se disseram nos média espanhóis, voluntariamente, como nos
média portugueses, por ignorância ou esquecimento !
Porque,
independente em 1830, a Bélgica nunca conheceu regime de ditadura, nem mesmo
sequer de censura — excluindo é claro as vezes em que esteve ocupada por tropas
alemãs, durante a primeira e a segunda guerras mundiais. E a Bélgica tem desde
sempre uma grande tradição de acolhimento de refugiados políticos, de Karl Marx
a Victor Hugo, para não falar mais modestamente nas centenas de jovens
portugueses que lá foram acolhidos oficialmente como refugiados políticos
durante o salazarismo…
Não
havia pois que espantar se cinco membros do governo catalão escolheram
instalar-se em Bruxelas, capital não só de um país com tais tradições
democráticas, mas também, dado muito importante, capital da União Europeia. De
lá poderiam falar livremente para a Europa e para o mundo da violação dos
direitos políticos dos catalães pelo governo de Madrid e da ocupação das
instituições catalães pela polícia e a “guardia civil” de Madrid. Enquanto que
os colegas que se apresentaram imprudentemente, talvez até de boa fé, perante
os tribunais de Madrid foram imediatamente presos…
Ora,
há precisamente uma semana, os tribunais de Madrid decidiram libertar alguns
destes presos sob caução, manter outros em prisão e anular o mandado de
detenção europeu para o presidente e os quatro ministros atualmente em
Bruxelas. Mantendo porém a ordem de prisão caso estes exilados em Bruxelas
regressem à Catalunha ! Decisão que fez que a justiça espanhola (com aspas ou
sem elas, como queiram) se cobriu de ridículo aos olhos dos juristas belgas e
até talvez da justiça belga que se vai pronunciar esta semana sobre o dossiê.
A
decisão da justiça espanhola interveio no dia seguinte ao da audiência no
tribunal de Bruxelas onde os advogados da defesa defenderam a não-execução do
mandado de detenção, na medida mesmo em que os factos incriminados de rebelião
e sedição não são puníveis na Bélgica. E que, por outro lado, havia, segundo
eles, um risco de “violação dos direitos fundamentais” caso os cinco acusados
fossem reenviados para Espanha.
Com
efeito, como declarou a minha amiga e célebre advogada belga Michèle Hirsch ao
diário bruxelês Le Soir : “Ao retirar
o mandado de detenção europeu, a justiça espanhola reconheceu que tomava em
conta o risco que o juiz belga considere o mandado inexecutável, ou que só o
executasse para certas infrações. O que teria levado a uma diferença de tratamento
com os outros dirigentes catalães perseguidos e presos em Espanha. Na
realidade, o mandado de detenção europeu foi criado numa base da confiança recíproca
entre as autoridades judiciárias dos países da União Europeia, quando a decisão
espanhola significa uma desconfiança em relação aos juízes belgas, e mais
largamente à justiça europeia !”.
Segundo
a mesma advogada, “o mandado espanhol de detenção europeu era apenas motivado
por opiniões, votos ou decisões tomadas […] em virtude dos mandatos políticos
deles. Ora, o artigo 58 da Constituição belga diz que estas ações não podem
nunca ser consideradas como infrações no que diz respeito a deputados ou
ministros : isso está ligado ao funcionamento mesmo do Estado de direito !” E
Michèle Hirsch concluía : “Imaginem o que representará para as autoridades
espanholas se a justiça belga disser no próximo dia 14 de dezembro, uma semana
antes das eleições regionais na Catalunha, que as atividades incriminadas no
mandado de detenção europeu eram perfeitamente legítimas ?”
Quando a União Europeia joga a
ponce-pilatos
Esta
semana e a próxima semana vão pois ser decisivas para o futuro da Catalunha ou
vão, no mínimo, marcar fortemente data na história contemporânea da Catalunha.
A
manifestação de 200 “alcaides” catalães em Bruxelas em 7 de novembro e a
manifestação, de baixo de chuva e no frio, de mais de 45 mil catalães em
Bruxelas na quinta-feira passada, 7 de dezembro, foram absolutamente
impressionantes : não me lembro de nenhuma outra manifestação deste género e
com esta amplitude que tenha tido lugar junto das instituições europeias de
Bruxelas.
E,
depois das primeiras decisões das instâncias judiciais belgas globalmente
favoráveis aos cinco refugiados na Bélgica em 5 de novembro [1],
espera-se para esta quinta-feira 14 nova decisão do tribunal de Bruxelas, uma
semana antes das eleições de 21. E quando vejo as reações de meios políticos [2]
como de meios jurídicos belgas, tenho grande esperança de poder continuar a ter
confiança na justiça belga e na democracia belga : até porque imagino dificilmente
que elas não tomem em consideração o direito inquestionável dos catalães de
escolherem democraticamente na urnas o seu futuro político e institucional…
Ficará
porém uma interrogação em suspenso : a União Europeia, que tanto fez para que
esta pequena “união europeia” que foi a Jugoslávia se desmantelasse na
violência, na guerra, com tantos milhares de mortos, olha agora com olhos de
ponce-pilatos para as ambições pacíficas catalãs e para as violações da
democracia política pela força brutal de um governo de Madrid não só
minoritário como formado por um partido acusado de corrupção larvada [3].
E por uma justiça espanhola acusada em junho passado de politização pelo
Conselho da Europa e de se encontrar na cauda da Europa em matéria de
independência…
Depois
dos atentados à democracia na Hungria e na Polónia, a atualidade catalã dá-nos
uma vez mais a prova de que os direitos políticos dos cidadão em democracia não
são a primeira preocupação de uma eurocracia que vive ela própria largamente à
margem de um sério controle democrático pelos cidadãos. Mas se pensamos que a
União Europeia tem que ser cada vez mais uma realidade, então há que exigir que
tais direitos políticos sejam seriamente protegidos e que os cidadãos não possam
ser reduzidos ao estatuto de meros consumidores naquilo que mais não seria
então do que um mero “mercado comum” [4]…
Texto que serviu de base à minha intervenção
na sessão organizada pela Iniciativa Cidadã de Solidariedade com a Catalunha,
Coimbra, 11 de dezembro de 2017.
[1] O juiz de instrução impôs apenas que os
cinco membros do governo catalão 1. não pudessem deixar o território belga, 2.
residissem num endereço fixo e 3. se apresentassem pessoalmente em todos os
atos de procedimento ou a todas as convocações das autoridades judiciárias e policiais.
[2] Meios políticos que não foram apenas
flamengos, como foi muito dito e escrito por aí. A tomada de posição do
presidente do Parti Socialista francófono foi deste ponto de vista bastante
significativa.
[3] O Partido Popular de Mariano Rajoy
procura assim relançar e reforçar a posição do partido na cena política
espanhola, como procura fazer esquecer ou pelo menos passar para um segundo
plano a questão da corrupção no interior do partido.
[4] Sobre a questão, ler as excelentes síntese
e análise de Filipe Vasconcelos Romão, Espanha
e Catalunha : Choque entre nacionalismos, Bookbuilders, Silveira, dezembro
de 2017, 138 p., livro que será lançado depois de amanhã.
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