Inconvenientes de uma conceção

J.-M. Nobre-Correia
A fragilização dos média levou muitos a praticar um jornalismo ligeiro e explosivo: uma estratégia de vistas curtas…
O ofício de informar sempre existiu. Utilizando sucessivamente, e até mesmo paralelamente, a expressão oral, manuscrita e impressa. Em ambiente de repressão ou de liberdade, em maior ou menor grau. Mas é claro que o jornalismo enquanto atividade profissional supôs uma sociedade democrática. E não foi por acaso se, de fins do século XVIII à atualidade, as lutas pela democracia e pela liberdade de informar foram nitidamente concomitantes.
É claro que, uma vez alcançada a liberdade de informar, isso não significou que a atividade jornalística passou a ser uma garantia para a democracia. Até porque a perceção da atualidade e o seu relato não são do domínio das ciências ditas exatas: a apregoada objetividade não existe. Há sim competência profissional, rigor e honestidade. A que se vêm juntar a sensibilidade e a cultura de quem perceciona e relata os factos de atualidade.
Há, pois, quem, em função destas sensibilidade e cultura, das suas opções ideológicas, faça uma seleção dos factos, mas também um relato, uma perspetivação e uma análise destes factos, que se traduzem em combate contra a democracia e o Estado de direito. E quem proceda a essas mesmas operações jornalísticas sem travar conscientemente qualquer combate antidemocrático, embora o que produz tenha consequências similares. Que neste segundo caso constituem propostas de mutação de fundo e mesmo convites a uma radicalização dos cidadãos perante a democracia e o Estado de direito.
O jornalismo militante sempre existiu, situemos nós o aparecimento do ofício na “descoberta” da prensa tipográfica (no século XV) ou na industrialização da imprensa (no XIX). Já a variante irrefletida é fruto antes do mais de uma lógica da concorrência desenfreada dominada cada vez mais pela informação em tempo real. Uma lógica da concorrência particularmente acentuada com a desmonopolização do audiovisual, nos anos 1970, e ainda mais assanhada com a abertura da internet ao público em geral, nos anos 1990.
A atividade jornalística transformou-se assim num permanente contrarrelógio que não dá (muito) tempo à verificação e à desejável perspetivação dos factos. Enquanto a redução dos meios financeiros e humanos de que passaram a dispor as redações abriu as portas à interferência cada vez mais evidente de numerosas assessorias de empresas e instituições que propõem “peças” prontas-a-publicar. E não é a inexperiência de redações crescentemente mais jovens (porque menos dispendiosas), desprovidas de memória e solidez cultural, que é suscetível de resistir às numerosas instrumentalizações vindas do exterior.
As audiências (da imprensa, da rádio e da televisão) tendo fortemente diminuído, como resultado da gigantesca proliferação dos média, boa parte das redações caíram na tentação de procurar à viva força temas capazes de provocar sensação. Temas onde houver ou será suscetível de haver declarações bombásticas, gritaria, lágrimas, farsa, violência. Acrescentando a estes ingredientes de base, se necessário for, a pitada de terminologia, de montagem sonora ou de imagens para tornar a peça ainda mais acutilante, perturbante, emocionante.
Nesta singular conceção do jornalismo, os média passaram a estar particularmente atentos a políticos franco-atiradores (que pouco mais representam do que eles próprios) e a organizações ativistas. Contanto que a estratégia de comunicação destes preveja iniciativas e declarações estrondosas, de preferência anunciadas com antecedência, para que as redações não sejam apanhadas desprevenidas. Os nossos média passaram assim a ser inundados pela comunicação orquestrada por partidos e sindicatos, assim como por afirmações e gestos mais ou menos espalhafatosos e à margem da legalidade.
Esta maneira de tratar a atualidade, sem os devidos recuo e serenidade, tem, porém, graves inconvenientes: a perda de credibilidade junto dos cidadãos, seguida de um quase irremediável afastamento. O que explica o descrédito em que se encontram os média de informação em Portugal e o número crescente de cidadãos que deixaram de ler jornais, ouvir rádios ou ver televisões, de estar minimamente ao corrente do que se passa no país que é o deles. Enquanto um populismo de desespero vai medrando em extremismo…
Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles, autor do livro Média, Informação e Democracia (Almedina).
Texto publicado no diário Público, Lisboa, 24 de fevereiro de 2020, p. 9.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Da nova razão de ser

Opções de uma singularidade

Dos termos e das noções