Estas manifestas insuficiências

J.-M. Nobre-Correia

Os jornais portugueses estão confrontados a dificuldades decorrentes dos meios humanos, técnicos e financeiros de que dispõem…

Leitor, ouvinte, espectador ou internauta, tem-se demasiadas vezes o sentimento que o jornalismo praticado em Portugal é globalmente insuficiente. E até que, de certo modo, não evoluiu com as necessidades do tempo presente. Que, exagerando um pouco, continua a fazer-se jornalismo como em fins do século XIX ou, pelo menos, como até aos anos 40 do século XX. Isto é: anunciando factos recebidos na redação ou, na melhor das hipóteses, cuidadosamente recolhidos por jornalistas da redação. A que se juntavam tomadas de posição ideológicas consideradas indispensáveis.

Só que o jornalismo de há uns 70-80 anos para cá evoluiu. E evoluiu sob a pressão mesmo da extensão da paisagem mediática e da progressiva proliferação dos atores que nela intervêm. Porque a entrada em cena decisiva da rádio no território da informação jornalística no após Segunda Guerra Mundial, a da televisão no decénio seguinte e a da internet já na viragem do século fizeram que a conceção do jornalismo tenha sido reequacionada entre os vários atores. Até porque, confrontados realmente pela primeira vez à diversidade, os cidadãos passaram a esperar conteúdos e formas de tratamento diferentes da atualidade.

Só que tal evolução supôs meios humanos e técnicos substancialmente diversos da fase anterior. A prática do jornalismo tornou-se assim cada vez mais um exercício de elevado custo financeiro. O que passou a ser ainda mais evidente nos últimos 20-30 anos. Nos diários de referência europeus, por exemplo, as redações tiveram assim que ser reforçadas em termos de efetivos e alargadas no que se refere às especializações, atingindo por vezes dimensões quatro ou cinco vezes superiores às dos colegas portugueses do mesmo tipo: diários como o espanhol El País ou o francês Le Monde contam hoje respetivamente “mais de 400” e 520 jornalistas.

É que a prática de um jornalismo de qualidade tem exigências dispendiosas. Só assim pode propor um valor acrescentado e uma mais valia a leitores, ouvintes, espectadores ou internautas que já tiveram conhecimento do essencial da função de anúncio pelas chamadas “redes sociais”. Quando não, o dito jornalismo reduzir-se-á cada vez mais a um exercício de canalização e amplificação da atualidade criada no exterior, no interesse dos que estão na sua origem, possa ela ser desprovida de pertinência e até de rigor factual. Deixando, pela mesma ocasião o campo livre a toda a espécie de derrapagens. Porque faltam as equipas suficientemente numerosas e especializadas para praticar um jornalismo de terreno rigoroso, devidamente verificado em termos factuais, posto em indispensável perspetiva e enriquecido por uma análise competente e pertinente…

Ora, em Portugal, é por demais evidente que é de canalização que se trata em boa parte dos casos e não de jornalismo. Basta ver a presença exagerada, ultrapassando tudo o que é razoável, da produção das ordens, sindicatos e partidos, e particularmente de partidos que, sendo ultraminoritários, souberam e sabem produzir uma comunicação sensacionalista, alarmista, inquietante. Ou a de um presidente da República, “criador de factos” e célebre instrumentalizador dos média há quase meio século. Sem esquecer os omnipresentes clubes e “reis” do futebol. Todos eles são produtores de conteúdos que permitem preencher substancialmente o espaço dos jornais, seja embora a matéria muitas vezes desprovida da mais elementar pertinência. Porém, o “jornalismo sentado”, largamente praticado no nosso país, dá-lhes tanto mais cobertura que “a papinha” proposta está praticamente feita e que, desde logo, os custos que acarretam ao média são realmente mínimos.

Ao contrário desta prática, ir para o terreno procurar detetar o que realmente ocorre na vida quotidiana e é suscetível de ter incidências no dia a dia dos cidadãos tem custos. Custos tanto mais elevados que a cobertura da atualidade por parte do média for larga e especializada. Vêm acrescentar-se depois a estes custos iniciais os decorrentes da indispensável documentação de natureza a completar o tratamento da “peça”, assim como da verificação dos dados factuais que nela figuram. Tanto mais que as derrapagens, num mister que não tem a pretensão de pertencer ao ramo das ciências ditas exatas, são potencialmente possíveis nos mais diversos aspetos.

Para procurar evitar estas derrapagens, um jornal como o francês Le Monde faz passar os textos dos seus redatores por quatro e até cinco filtros: o secretariado de redação do serviço a que a matéria diz respeito, o chefe do serviço encarregado da edição desse dia, o editor desse serviço, a revisão/correção e, em casos de matéria mais sensível, um dos membros da própria chefia de redação. O que implica uma equipa de redação numerosa e devidamente diversificada em termos de competências. Requisitos que manifestamente nenhum jornal português pode assumir, dadas as vendas (em banca ou por assinatura, em papel ou em digital) extremamente baixas em relação à demografia do país e mesmo ínfimas se pensarmos em termos de lusofonia (que a internet tornou possível como mercado) e até mesmo a pouca publicidade que recolhem. E sem receitas, os investimentos de fundo são difíceis e até mesmo impossíveis.

De facto, os jornais portugueses vendem-se pouco porque são caros, mal distribuídos e dispõem de serviços comercias insatisfatórios. Mas também porque o conteúdo redatorial é quantitativamente e qualitativamente sem comparação com o de colegas europeus com idêntico posicionamento (como já aqui foi escrito: “Uma urgência a não ignorar”, Público, 3/9/2022). Como cidadãos de uma democracia moderna componente da União Europeia, os portugueses têm porém direito a uma informação de qualidade. O que não poderá ser-lhes proposto se eles próprios não fizerem por isso, sabendo fazer a diferença entre o que é mera procura de emoções e divertimento, e o que lhe permite ser cidadãos de corpo inteiro, membros ativos da vida na polis.

Paralelamente, e até mesmo antes desta tomada de consciência dos cidadãos, os meios dirigentes económicos e socioculturais do país, no próprio interesse deles, têm que perceber bem a importância da informação jornalística na dinâmica de uma sociedade. O que não dispensa uma liminar e urgentíssima iniciativa dos poderes legislativo e executivo para que tais iniciativas possam surgir e ser mesmo incentivadas. Favorecendo o desenvolvimento de uma informação de qualidade, a substancial melhoria dos jornais existentes, e a criação de jornais digitais realmente generalistas (e não apenas sectoriais ou temáticos). Pela boa e simples razão que Portugal e os portugueses não podem continuar a ser vergonhosamente os parentes pobres em matéria de informação de qualidade numa União Europeia onde seria antes desejável que nos encontrássemos entre os melhores. E é responsabilidade histórica de todos nós fazer que isso venha a acontecer o mais brevemente possível…

 



Original do texto que teve que ser ligeiramente encurtado por mim próprio (de 6 862 para 6 565 carateres) e publicado no diário Público, Lisboa, 14 de novembro de 2022, p. 6.

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