O desmoronamento anunciado

J.-M. Nobre-Correia

A atual conjuntura social e política em Portugal, particularmente agitada, parece deixar antever uma grave crise com consequências imprevisíveis…

 

A estupefaciente atualidade política e social dos últimos dias provoca um profundo abalo no observador habituado ao funcionamento das democracias vizinhas. O que, subsequentemente, causa o tétrico sentimento de assistirmos ao desmoronamento da democracia portuguesa…

Estamos de facto perante uma espécie de série piramidal de fortes disfuncionamentos do sistema político. Para começar, com um presidente da República que ostenta cada vez mais a sua incapacidade para assumir responsavelmente o cargo. Semeando permanentemente opiniões, quando não intrigas e ameaças, que não deveriam muito simplesmente ser publicamente exprimidas. Intervindo manifestamente sobre matérias que não são constitucionalmente da sua competência. Fragilizando outros mandatários de poderes constituídos. Sendo incapaz de assumir a serenidade, a reserva e a altura de vistas que convêm ao exercício de tão alta função.

Temos depois um governo que o primeiro-ministro formou ou deixou formar sem as indispensáveis precauções em termos legais, deontológicos e éticos. Um governo em que são já numerosos aqueles que muito naturalmente, não deveriam ter aceitado integrá-lo. Um governo apoiado por um partido em que foram demasiado perdidos de vista os princípios do projeto ideológico da própria família política. Partido em que demasiados aderentes mais não pensam do que usufruir das mordomias a que a administração pública facilita o acesso.

Em frente, temos outro partido que nasceu de um equívoco, desprovido ontologicamente de coluna vertebral, de projeto sociopolítico consistente. Tendo por origem gente vinda do marcelo-salazarismo, mais não é do que uma agremiação de pequenos notáveis sobretudo de província, lançados à conquista das benesses decorrentes da gestão da coisa pública. Agremiação de desbocados incapazes de propor uma verdadeira alternativa e que continuam a querer ignorar novos concorrentes que procuram ocupar o espaço político deles e até alargá-lo bem mais para a sua direita.

Do outro lado do espetro político, assiste-se a um sem fim de “posições corretas” e de exposições de grande virtuosidade analítica, sem que os seus autores metam as mãos na massa e procederam de facto a construções ou a simples gestões originais, inovadoras, fora do sistema. Preferindo comodamente a atitude sentada dos ataques viperinos. Enquanto os cidadãos se vão progressivamente afastando de eleições autárquicas, legislativas e presidenciais, engrossando o número das abstenções e fazendo de certo modo perder representatividade aos eleitos.

Como estas constatações de carência sobre as formações dominantes e os seus vizinhos rivais hostis não fossem já suficientes para fragilizar o funcionamento da democracia portuguesa, vêm juntar-se movimentações de caráter largamente populista, sob capa das mais diversas corporações profissionais (ordens, sindicatos, associações diversas). Corporações pouco ou nada preocupadas com o respeito devido aos outros cidadãos e muito especialmente aos cidadãos socialmente mais desprotegidos e que só podem praticamente contar com os serviços públicos da saúde e da educação para não engrossaram as hostes dos esquecidos da democracia. Para tais corporações, uma conceção omnipresente de direitos desobrigada de deveres, reforçada por interesses puramente categoriais e primordialmente financeiros, justifica a desordem que impõem aos demais cidadãos assim como a fragilização dos serviços públicos que provocam, perante interesses privados que saem claramente reforçados de tais movimentações.

A toda esta situação já por si extremamente inquietante, vem o tradicionalmente ineficiente Ministério Público meter grãos de sal em série, fazendo um peculiar hercúleo esforço de zelo, de modo a multiplicar as intervenções suscetíveis de aumentar ainda a confusão ambiente. Impunemente, porque a chamada Justiça assume-se praticamente como um universo autogestionário, a funcionar em autêntica roda livre, sem ter que justificar-se perante os cidadãos.

Todas estas situações de disfuncionamentos e confusão são “pão abençoado” para os média e uma certa conceção de jornalismo à portuguesa. Um jornalismo largamente desprovido de meios, praticado sobretudo sem arredar pé da redação, particularmente sensível à espuma dos dias e ao que os iniciadores dos próprios eventos querem que se diga sobre eles. Em que a fulanização da atualidade, reduzida a uma dimensão paroquial, impede de fazer compreender o fundo das situações. Não se privando, no entanto, com manifesta delícia, de lançar achas explosivas para a fogueira, de modo a transformá-la em incêndio incontrolável.

Nas democracias vizinhas, aquando de uma situação de crise, os chefes de Estado convocam os representantes das forças vivas da nação, procurando servir de mediadores entre posições diferentes e fazer eclodir o compromisso mais favorável a um melhor funcionamento da democracia. Só que, em Belém, o bombeiro pirómano é manifestamente desprovido da lucidez e do talento indispensáveis para afrontar tal situação…

 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Como é possível?!

O residente de Belém ganhou mesmo?

Deixem-me fazer uma confissão