Superar uma debilidade congénita

J.-M. Nobre-Correia

Seria um engodo resolver a crise atual de um grupo, sem adotar medidas de fundo capazes de relançar o pluralismo da imprensa…

De repente, jornalistas e políticos dão-se conta que a imprensa em Portugal se encontra em crise! Como se os sinais de crise não datassem logo dos primeiros anos após o 25 de Abril. Para não ir mais longe e ver na situação da imprensa um subdesenvolvimento histórico que a autoestima corporativista dos jornalistas preferia não ver e que dava muito jeito a políticos que não tinham assim que dar satisfações aos cidadãos. E claro, descoberta agora a crise, aparecem logo, à boa maneira nacional, uma série de tudólogos espontaneamente competentes em matéria de média…

Ora, a crise tem razões históricas longínquas que fizeram que a imprensa nunca tenha tido em Portugal um desenvolvimento à altura da dimensão demográfica e geográfica do país. Porque o analfabetismo foi sempre bastante elevado. Porque o poder de compra da maior parte dos cidadãos foi reduzido durante longos anos para permitir a aquisição de um “produto de luxo”. Porque a distribuição foi sempre insatisfatória, os jornais ditos “nacionais” chegando tarde e a más horas à “província”, quando não no dia seguinte (a rádio tendo já anunciado desenvolvimentos mais recentes). Porque os jornais não chegavam e continuam a não chegar a vilas e aldeias do “interior”. Porque a questão da entrega cedo dos jornais nas caixas do correio dos assinantes nunca foi resolvida. Porque os jornais ditos “nacionais” concentravam e continuam a concentrar a cobertura da atualidade na faixa costeira centro-norte, com especial incidência na região de Lisboa e bastante menos na do Porto. Porque os diversos períodos de censura e de repressão descredibilizaram a informação proposta aos cidadãos. Porque o fraco desenvolvimento económico do país não era particularmente favorável a uma atividade publicitária capaz de constituir uma receita complementar importante dos jornais (para além das vendas e das assinaturas).

Portugal teve assim durante longos decénios poucos diários ou semanários “nacionais” de informação geral. E os seus níveis de tiragem e de difusão (“circulação”) foram e são inacreditavelmente baixos, em comparação com os de países europeus geográfica e demograficamente mais pequenos. A esta triste situação veio acrescentar-se depois do 25 de Abril uma inacreditável série de erros, com a gestão das empresas de edição assumida por gente sem a menor competência no sector. Enquanto a conceção jornalística foi largamente dominada pelo militantismo, a exaltação e o proselitismo, quando não pela partidarice.

Depois, no tempo do salazarismo, como antes dele, as escolas de jornalismo não existiam, contrariamente ao que até era o caso nos congéneres fascista, nazi e franquista. Agora as escolas superiores proliferam de maneira pouco razoável, propondo formações diversas em “comunicação” e áreas quejandas (mas não em jornalismo) a jovens muitas vezes pouco interessados pela informação e que nem sequer leem jornais de espécie nenhuma.

Depois, quando nos anos 1990 a digitalização e a internet vieram revolucionar profundamente o tratamento da informação, a produção, a distribuição e a comercialização dos jornais, o meio editorial português reagiu tardia e desajeitadamente, com consequências que ainda hoje são visíveis. Ora é toda uma nova conceção do funcionamento do sector que tem que ser posta em aplicação. Considerando nomeadamente que a edição em papel passará inevitavelmente a ser subalterna e mesmo residual em relação à edição em linha e à edição em PDF digital. Que os jornais ditos “nacionais” terão doravante que realizar, em páginas regionais devidamente identificadas por separadores, uma cobertura mais capilarizada da atualidade, sem perder de vista que o público potencial é agora o dos lusófonos espalhados pelo mundo, interessados por uma informação proveniente de Europa, vista com a sensibilidade portuguesa.

É certo que há por estes dias que tomar medidas urgentes para salvaguardar os média do GMG. Para salvaguardar postos de trabalhos e sobretudo para proteger um pluralismo já tristemente raquítico e acanhado. Mas há que ir mais longe e procurar dinamizar uma paisagem mediática de uma infinita pobreza. Criando um robusto e duradoiro Fundo para o Pluralismo dos Média de Informação Jornalística, com contribuições financeiras públicas (nacionais e europeias) e privadas. Legiferando de modo a favorecer fiscalmente os doadores deste Fundo, as empresas editoras de imprensa escrita, assim como empresas, instituições e particulares assinantes de jornais. De maneira a incentivar iniciativas novas dos jornais existentes em matéria de redação e de administração, mas também, e sobretudo, a suscitar criações de novos jornais (especialmente no norte-centro interior, como no país a sul do Tejo) por equipas de jornalistas e de gestores profissionais, acionistas das próprias editoras. E de modo a provocar um alargamento muito substancial do leitorado de jornais escritos.

Portugal não pode continuar a viver no quase deserto atual de pluralismo mediático e de um centralismo lisboeta que ignora largamente o resto do país. Como não pode continuar a satisfazer-se com um jornalismo que, globalmente, não está à altura do que melhor se faz na União Europeia, para além da fronteira que nos separa dela. Há pois que conceber uma imprensa escrita como um real pilar essencial da democracia pluralista e da cultura cívica, de uma informação de qualidade dos cidadãos, como de vigilância e controlo dos poderes constituídos.

Mas não é só a situação da imprensa escrita que tem que ser posta em questão. É mais largamente todo o sector dos média em Portugal que tem que ser repensado. E também a conceção mesmo da informação que não pode continuar arreigada antes do mais a serviços de comunicação de instituições e empresas, transformada em meros canais de promoção quotidiana das “verdades” oficiais da Presidência da República, dos ministros, dos partidos, das ordens, dos sindicatos e dos clubes de futebol. Há também que sair de um jornalismo de segunda mão no que diz respeito ao estrangeiro e de um “jornalismo sentado” em relação que se passa em Portugal, indo ao encontro dos cidadãos nas suas vidas quotidianas, preocupações e ambições. Antes que a “democracia portuguesa” se venha a transformar num triste qualificativo para um simulacro de uma plutocracia pouco recomendável…

Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles.

Texto publicado no Público em linha, Lisboa, 18 de janeiro de 2024

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