Os limites do pluralismo

J.-M. Nobre-Correia

Procurando repercussões na concorrência e nas redes sociais, média há que tentam a provocação, abrindo portas ao inaceitável…

Num país onde a reportagem, a investigação e até mesmo a correspondência são pouco praticadas, reina nos média uma estranha conceção do pluralismo. Até porque as redações são reduzidas e por vezes mal estruturadas, o conteúdo propriamente jornalístico (no sentido forte da palavra) sendo desde logo escasso.

Para tentar superar esta pobreza, a solução encontrada é recorrer a “colunistas” e “comentadores” muito diversos. Boa parte da colaboração destes não acarreta custos: serem publicados, passarem na rádio ou mostrarem-se na televisão é o pagamento de que usufruem socialmente. Embora haja outros que ganham muito bem a vida com tais prestações, pontificando em diversos média, imprensa diária e semanal, rádio e televisão. O que se traduz numa concentração da “opinião” que reflete uma estranha conceção do pluralismo.

Esta conceção singular do pluralismo é ainda acentuada pelo facto dos “opinadores” serem muitas vezes políticos no ativo ou reformados das lídes partidárias. Mas representando curiosamente um leque ideológico manifestamente desequilibrado, as opções de direita e mesmo de extrema direita estando bem mais representadas do que as do campo adverso. Constatação que é igualmente evidente no que diz respeito aos “colunistas” e “comentadores” ditos “residentes”, entre os quais encontramos membros e mesmo responsáveis partidários que preferem miraculosamente fazer esquecer tal estatuto.

Outro alargamento das contribuições externas é constituído por debates e entrevistas onde o enviesamento da “opinião” é também notório, fazendo até intervir personagens ligados ao salazarismo e às variantes ideológicas reinantes no antigo regime. Dando-lhes a notoriedade indispensável à respeitabilidade sob pretexto de um estatuto intelectual que os média se apressam a reconhecer-lhes. Como se os 48 anos do Estado Novo não fossem de natureza a proscrever ad aeternum tais indivíduos do jornalismo democrático, embora haja no campo da antiga resistência quem tenha decidido irresponsavelmente dar-lhes aceitabilidade.

Tudo leva a crer, é verdade, que os média não se dão conta do que têm feito em permanência, e desde há longos anos, como promoção da nova direita e mesmo da extrema direita. Quando passaram a dar guarida a dois únicos eleitos na Assembleia da República como se eles representassem organizações políticas socialmente implantadas, quando de facto mais não eram do que meras empresas unipessoais. Quando acharam que deveriam passar a entrevistá-los, a cada momento, em pé de igualdade com os representantes de organizações eleitoralmente confirmadas. Quando consideraram que a irresponsabilidade manobreira congénita do atual chefe de Estado ao recebê-los sistematicamente em Belém lhes dava credibilidade idêntica à das outras formações políticas históricas.

No estilo habitual que é o deles, que tudo põem em questão menos a sua própria prática profissional, os média não se interrogam sobre a maneira como têm promovido as formações radicais desprovidas inicialmente de base social. Formações a que foram os média e a televisão em particular a dar visibilidade, credibilidade e aceitação social, quando eram apenas iniciativas unipessoais. É certo que, emissões, debates e entrevistas que, a pretexto de pluralismo, servem de trampolim para a promoção da direita radical, são um fenómeno que se encontra também noutros países europeus. Basta ver o que se passa nos média franceses propriedade de Vincent Bolloré, uma das maiores fortunas do país e grande promotor de um antissemita (…de origem judaica!) que se afirma como o novo mentor da extrema direita soberanista e racista.

Se na sua prática quotidiana, um média não pode ser um painel de afixação de conteúdos irresponsáveis[1], também não pode dar o sentimento de poder ser jornalisticamente um inocente trampolim para personagens, organizações e ideologias que não se coadunam com os ideais do 25 de Abril. Sobretudo se se trata de um média respeitador do Estado de direito democrático. E se os seus jornalistas não se tiverem esquecido que, em parte alguma, em tempo algum da História, a extrema direita permitiu o exercício livre do ofício de informar…

Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles.



[1] Ver « Liberdade e Censura », in Público, 24 de agosto de 2021. 

Texto publicado no diário Público, Lisboa, 15 de novembro de 2021, p. 6. 

Comentários

  1. Pergunto aqui (no Facebook, há muito ruído) a sua opinião sobre ser público o(s) pagamento(s) desses "residentes" com cadeira fixa, num dia e hora marcada (eu ia escrever com "cama, mesa e roupa lavada") especialmente nas tvs. Tal seria mau ou pouco ético? Nem na tv pública? Faz-me impressão tanto boato sobre montantes que A B ou C ganham ou ganharam enquanto comentadores, o mesmo quanto aos locutores e apresentadores saltitantes.
    Peço perdão do abuso, mas gostava de saber a sua opinião sobre a CNN portuguesa - se calhar o seu livro responder-me-á a tudo isto, se assim for, fica respondido pois vou comprá-lo. Grata pelos textos que nos oferece - Méri Almeida

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