A proliferação contra a pluralismo

J.-M. Nobre-Correia

Novas tecnologias foram alargando a diversidade dos média. Mas a da informação jornalística tem-se, de certo modo, reduzido…

O tema suscitará polémica. E seria bom que assim fosse. Porque se trata, no fim de contas, de nos interrogarmos sobre a realidade da democracia e as potencialidades de acesso dos cidadãos à vida da polis.

A história dos média na Europa põe de facto em evidência uma contradição de fundo: à medida que a pluralidade se alarga a novos géneros de média, o género precedente entra em crise e procura reposicionar-se para tentar sobreviver. Por outro lado, a multiplicação dos emissores de mensagens e a lógica da concorrência com vista a disputar audiências e receitas, conduz paradoxalmente a um encolhimento do pluralismo das sensibilidades editoriais-jornalísticas.

Dito de outro modo: no início do século XX, a entrada em cena da rádio fragiliza  a imprensa, mas propõe uma nova dimensão da abordagem da atualidade, ao mesmo tempo que alarga a audiência a públicos antes sem acesso à informação escrita, dado o analfabetismo e o facto de os locais de residência ou de trabalho ficarem fora da área de distribuição da imprensa. E uma situação comparável se opera com a entrada em cena da televisão, a imagem constituindo uma vantagem fundamental [atout majeur] em relação à rádio e às barreiras linguísticas que esta opõe.

Com a digitalização dos sinais e a internet, a revolução é total: os recetores podem doravante ser igualmente emissores de mensagens e ter até um potencial de audiência planetário. Com duas caraterísticas anexas: a emissão como a receção podem ser efetuadas a baixo custo; a informação jornalística passa a coexistir com diversas variantes da desinformação, obra de profissionais da instrumentalização como de ativistas desprovidos de formação profissional.

A partir dos anos 1960-1970, sobretudo, entramos assim num mundo de superabundância de média e de mensagens. Mas de média cada vez mais pobres em meios financeiros, técnicos e humanos para poderem propor abordagens jornalísticas da atualidade suficientemente vastas, significantes e rigorosas. Pelo que, consequência desta debilidade dos meios como da proliferação dos média, a informação passa a ser largamente tributária da comunicação de empresas e instituições diversas, mesmo nos média que se querem de qualidade,

Esta pobreza da informação jornalística, cada vez mais evidente numa sociedade que nunca dispôs de tantos média, levanta um problema de fundo, particularmente premente numa sociedade geográfica, demográfica e economicamente modesta, de recursos limitados. Poderá, com efeito, tal proliferação garantir um pluralismo da informação no sentido jornalístico do termo? Poderão os seus atores dispor dos mais elementares meios financeiros, técnicos e humanos para poderem praticar realmente uma informação de qualidade, de exigência e de rigor? Não ficarão de facto estes atores à mercê das iniciativas e campanhas dos mais diversos grupos de pressão?

Desde logo, não suporão a qualidade e o pluralismo da informação uma proliferação dos média contida, delimitada? Concretamente: serão as caraterísticas demográficas e económicas da sociedade portuguesa de natureza a poderem sustentar, por exemplo, todos os canais nacionais de rádio e televisão generalistas existentes? De suportar, mais especificamente, todas rádios e televisões “de informação”? De manter todos os canais da RTP, da SIC e da TVI? De sustentar todas as rádios e até televisões ditas locais, que se encontram à mercê dos pequenos potentados locais e das rivalidades entre os seus clãs?

No fim de contas: as exigências de uma informação e até de uma programação de qualidade não supõem antes uma paisagem mediática redesenhada, juridicamente definida e levada a concurso legal na atribuição das frequências? Proliferação não quer de modo algum dizer pluralismo e qualidade da informação, manifestamente. Seria pois bom que os poderes legislativo e executivo tivessem então a coragem que lhes tem faltado para se debruçarem seriamente sobre uma área politico-cultural que, em termos de legalidade democrática, tem vivido ao sabor de uma insuportável extraterritorialidade…

Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles, autor do livro “História dos Média na Europa” (Almedina).



Texto publicado nas edições em papel e em linha do diário Público, Lisboa, 21 de julho de 2023, p. 10.

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