Um retrato ainda bastante habitual

J.-M. Nobre-Correia
Numa sociedade corroída por clivagens sociais monstruosas e uma hipocrisia despreocupada, o combate cruel e determinado de uma mulher…
Estes tempos de pandemia não são nada convidativos para assistir a espetáculos. Sejam eles em espaço fechado ou em recinto aberto. Só gente irresponsável aí vai de ânimo leve. Mas havia pelo menos três razões para ir ver Ordem moral de Mário Barroso, nas salas de cinema desde quinta-feira 10. A primeira: Mário Barroso é um amigo, antigo companheiro de exílio em Bruxelas. A segunda: imaginava que, dado o tema, devia falar-se do Diário de Notícias nos primeiros decénios do século XX e talvez até antes de isso. A terceira: dado o personagem central do filme, Maria Adelaide Coelho, filha do fundador do jornal, era inevitável que fosse também evocado o seu marido, Alfredo da Cunha, que deu o nome a uma das principais praças do meu Fundão, cidade que o viu nascer.
À parte o título do filme, que me parece pouco imaginativo, pouco “literário”, Ordem moral é um filme formidável. Um filme que põe magnificamente em evidência as clivagens sociais abissais, entre a miséria do povo e o luxo da alta sociedade. Onde gente humilde enfrenta em condições trágicas a febre pneumónica. Onde mulheres são vítimas de violência sexual de patrões e, depois, vítimas também de abortos clandestinos. E onde a margem de tolerância para com o comportamento dos senhores da grande burguesia é praticamente sem limites.
Alfredo Cunha, que, sucedendo ao seu sogro Eduardo Coelho, fez do Diário de Notícias um grande jornal do dobrar do século, é na vida privada um marido que ignora praticamente a esposa, leva a sua vida de aventuras femininas jovens e decide mesmo da venda do jornal sem informar a legítima herdeira da empresa editora. Maria Adelaide, que tem passatempos de mulher da alta burguesia, frequentadora de receções mundanas e de atriz amadora de teatro, é também uma mulher sensível à aflição e ao infortúnio dos desfavorecidos da sorte. Nomeadamente sensível ao estado de saúde do seu chofer, gravemente atingido pela pneumónica.
Será aliás com o seu chofer, uma pequena vintena de anos mais novo, que Maria Adelaide decide abandonar o luxo em que vivia e refazer a vida. O que não pode ser aceite pelo seu meio social de origem: porque uma senhora não pode deixar o marido (tenha este as amantes que tiver); porque uma senhora na quarentena de anos não pode refazer a vida com um jovem no início da vintena (tal diferença de idade é privilégio reservado aos homens); porque uma senhora da alta burguesia não pode conceber a vida com um simples chofer.
Tendo abandonado palacete e família em Lisboa, todos os meios são mobilizados para a encontrar (embora ela tenha o cuidado de fazer chegar ao ex-marido uma mensagem dizendo que está bem). Polícia e ministério público são solicitados e Maria Adelaide é encontrada. E, claro, só uma saída é possível para tão delicada situação familiar e social: três sumidades da medicina, Egas Moniz (…futuro prémio Nobel!), Júlio de Matos e Sobral Cid, declará-la-ão doente psiquiátrica, não porque a medicina assim o constate, mas porque o poder social assim o exige em Lisboa. E as razões da moral social necessitam de um internamento em clínica psiquiátrica, em manicómio, como então se diz.
Perante este horror absoluto, Maria Adelaide afirma-se como uma mulher corajosa e decidida, lutando pela sua dignidade e a sua independência. Não voltará para Lisboa e para Alfredo da Cunha e ficará o resto da vida com Manuel Claro. Alfredo da Cunha, que foi um homem de grande dinamismo em sectores bastante diversos da vida lisboeta, e autor de uma obra literária prolífica de vária natureza, deixa um sentimento horrível, mesmo quando se é admirador da sua obra de jornalista e de autor (em matéria de história da imprensa, nomeadamente).
Numa realização e numa direção de imagem magníficas, e numa interpretação que ultrapassa com brio a demasiado habitual teatralidade no cinema português, Mário Barroso propõe-nos um filme que é de facto um retrato das relações sociais nos anos entre as duas guerras mundiais e do estatuto trágico da mulher portuguesa então. Com aspetos que ainda encontram reflexos fortes na sociedade portuguesa dos nossos dias…

Comentários

  1. Calhou passar por aqui e ler o seu post que apreciei, embora me permita que faça duas observações: Maria Adelaide não foi internada numa clínica mas no Hospital Conde Ferreira, no Porto, destinado a doentes do foro psiquiátrico. O chauffeur não se encontrava afectado pela pneumónica. Mais acrescento que acabaram por ir viver paa os arredores do Porto onde Maria Adelaide se dedicou afazer trabalhos de costura. Por razões de vária ordem conheço bem toda a história, endo tido oportunidade de visitar o Palácio de S. Vicente que era lindíssimo. Nunca ouvi dizer que Maria Adelaide alguma vez se tivesse dedicado mesmo que por pouco tempo ao teatro mas, sim, à declamação. Porvavelmente deve ter conhecimento que a jornalista Manuela Gonzaga escreveu um livro sobre o 'escândalo' e que, na minha modesta opinião, retrata bem como tudo se passou.

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