Estes tais outros "comentadores"

 J.-M. Nobre-Correia

Comparar os futeboleiros aos políticos? “Intolerável!”, dizem estes. Talvez não tanto. E significativo de uma situação…

Foi um alarido nos bastidores doirados do poder. Ousarem compará-los a “comentadores” futeboleiros! O que essas más-línguas querem é acabar com a liberdade de expressão e desencadear uma nova fase da antipolítica, do antipartidos. Como se eles, militantes, mandatários públicos e mesmo altos dignitários do aparelho de Estado, não fossem capazes de análises políticas totalmente independentes!…

Que má-fé, com efeito. Alguém viu os políticos “comentadores” irem com os cachecóis dos partidos ao pescoço? E alguém os viu a insultarem-se aos gritos? Aí está a prova que não se podem confundir os “comentadores” todos! Só que, no fundo, no fundo, a natureza do serviço prestado aos cidadãos é relativamente idêntica: levá-los a partilhar a fé no partido/clube e naquilo que representa. Possa embora haver umas divergenciazitas com a direção do partido/clube. E esta é aliás uma das razões que leva o “comentador” a querer marcar presença nos média, para poder, na devida altura, recolher benefícios nas lutas internas. Ou então, trata-se de manter uma certa visibilidade rentabilizável por processos diversos, e não apenas junto dos eleitores/sócios.

O facto é que os média portugueses estão invadidos por “comentadores”. E entre eles encontramos numerosos políticos no ativo, do autarca local ao conselheiro de Estado, passando pelo deputado ou o antigo ministro. Uma situação especificamente nacional. Não que a intervenção dos políticos nos média não exista noutros países. Mas trata-se então de “tribunas” pontuais (e não periódicas), em que propõem os seus pontos de vista sobre temas de atualidade ou reflexões fruto da experiência pessoal.

Nos média europeus, a análise propriamente dita é obra sobretudo de jornalistas-editorialistas seniores, docentes universitários ou investigadores experimentados, e mais raramente de profissionais de alto nível. Em crónicas curtas, incisivas, e não em palavreados intermináveis. Em entrevistas de duração igualmente limitada, com perguntas adequadas de um conhecedor da matéria (e não perguntas passe-partout). Em emissões de debate com um número restrito de reconhecidas autoridades na área.

A figura do “comentador” em dia, emissão ou espaço fixos, que se pronuncia sobre toda a espécie de assuntos, é praticamente inexistente nos média europeus de qualidade (populares ou de referência). Muito menos, “tudólogos” que pontificam ao mesmo tempo em diferentes média, ganhando até a vida fazendo unicamente isso. E é absolutamente inconcebível, em países europeus de velha democracia, que personalidades que têm assento em instituições como o Conselho de Estado, por exemplo, possam ser “comentadores”, em vez de adotarem a reserva que deveria impor-se-lhes do momento em que aceitaram integrá-las.

Muito provavelmente, a invasão dos média pelos “comentadores” políticos explica-se por um recrutamento de jornalistas todo-o-terreno, pretensamente capazes de “cobrir” toda e qualquer matéria. Mas também porque as equipas de redação em Portugal são pouco numerosas (comparadas com os mais de 300 jornalistas do madrileno El País e os 500 do parisiense Le Monde, por exemplo). Pelo que os média portugueses precisam de quem, vindo do exterior (sob contrato, a “recibo verde” ou …grátis) preencha os pontos fracos em matéria de especialistas e lhes ocupe espaço ou tempo de antena. O que traduz claramente a fraqueza em maior ou menor grau das empresas editoriais em termos financeiros e humanos.

A presença farta de políticos no ativo como “comentadores” traduz de facto a pobreza dos média portugueses em termos de quantidade, variedade e qualidade da informação inédita que propõem aos cidadãos. Mas traduz igualmente a inacreditável omnipresença e ascendente que os políticos foram tomando para além do perímetro normal dos seus mandatos públicos. Procurando nomeadamente puxar “os cordelinhos” da informação, mantendo à distância verdadeiros especialistas independentes (mas não desprovidos de sensibilidade sociopolítica). E mantendo sobretudo os cidadãos longe da esfera política, privando-os da análise crítica que os levaria a exercer o desejável controlo das atividades dos seus representantes…

Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles.

Texto publicado no diário Público, Lisboa, 29 de setembro de 2020, p. 7.

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