O que de facto está em jogo…

 J.-M. Nobre-Correia

As discussões e decisões em torno do Orçamento de Estado, em tempos de pandemia, põem a questão do futuro da esquerda deste país…

Observando-o com olhos de quem viu e continua a ver o que se passa na cena política europeia, o Bloco de Esquerda assemelha-se muito, por vezes, a uma agremiação de extraterrestres. Com manifestamente alguns espíritos brilhantes. E com outros egocêntricos exibicionistas palradores adoradores dos média. Mas com notórias graves deficiências em termos sociopolíticos: uma quase ausência nos planos autárquico, sindical e demais corpos intermédios de toda a espécie. E uma manifesta ausência de vontade de meter as mãos na massa, saltando decididamente dos discursos de tribuna para a gestão quotidiana de realidades comezinhas.

Tudo isto se tornou particularmente flagrante desde que vivemos em pandemia, já lá vão nove meses. E perante esta pandemia vivida dolorosamente pela população, o Bloco vai de efeitos oratórios parlamentares em efeitos oratórios televisivos. Formulando reivindicações mais ou menos radicais, tanto mais radicais que não são os seus brilhantes oradores que terão depois que assumir a sua gestão financeira. E anunciando agora que, afinal, não votará o Orçamento de Estado. Esperando que resultados de tais atitudes e de tal posicionamento político?

Em matéria política e eleitoral, as análises prospetivas a médio-longo prazo são sempre uma grande lotaria. Uma lotaria tanto mais aleatória nos tempos que correm que o futuro da pandemia e as suas consequências sanitárias, económicas e sociais continuam a ser totalmente imprevisíveis, deixando embora antever hecatombes terríveis. Há, no entanto, grandes probabilidades que o Bloco esteja de facto a jogar o seu futuro, alargando substancialmente o seu eleitorado ou desaparecendo pé ante pé nas brumas da memória…

Taticamente, a posição do Bloco obrigou de certo modo o Partido Comunista, bem mais responsável, a decidir-se pela abstenção, salvando assim o voto do Orçamento. Pensa provavelmente o Bloco que o seu radicalismo é de natureza a fazer-lhe ganhar votos entre eleitores tradicionais do PS e até entre os do PCP, tendo em consideração o desaparecimento progressivo (e provavelmente inelutável) das formações comunistas clássicas em toda a Europa ocidental. Só que o desaparecimento destas formações não abriu necessariamente espaço à criação ou ao reforço de herdeiros do trotskismo ou/e do maoismo: quase sempre foi antes o deserto que lhes sucedeu. Escapará o Bloco a este destino pouco entusiasmante? Ou tomarão as suas figuras de proa consciência que uma maioria parlamentar, um governo e uma política de esquerda só serão possíveis em colaboração crítica e exigente com quem continua a dominar o eleitorado de esquerda em Portugal: o Partido Socialista? Constatação que conviria também que o PCP pudesse fazer, reforçando assim uma potencial e operacional unidade da esquerda portuguesa!…


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