Quando o fosso se torna manifesto

J.-M. Nobre-Correia

A pandemia fez que a campanha eleitoral se passe quase só nos média e que “o interior” do país seja ainda mais ignorado…

Quem decidiu convocar eleições antecipadas não avaliou as consequências. Porque, em pandemia, não vivemos tempos normais e quase nada se passa como habitualmente. Assim o que diz respeito à campanha eleitoral.

Houve quem tenha feito reparar que a participação no voto será muito problemática. E que corremos o risco de termos uma abstenção mais elevada do que nunca. Mas o que foi pouco ou nada assinalado é que a campanha eleitoral se está a desenrolar de maneira totalmente diferente do habitual: com raros comícios, sessões de esclarecimento, arruadas…

Esta quase ausência “no terreno” deu lugar a uma novidade: a campanha passa-se quase unicamente nos média. É claro que, nas eleições precedentes, partidos e candidatos já prestavam especial atenção aos média, procurando uma visibilidade maior do que a permitida pelo contacto físico com eleitores. Mas, desta vez, a situação inverteu-se e é a campanha nos média que tomou particular importância.

Só que esta nova situação pôs ainda mais em evidência a debilidade da paisagem mediática portuguesa no que se refere à diversidade, au pluralismo e à penetração social. Em termos comparativos, Portugal é o país de Europa onde se publicam menos diários e onde estes têm as tiragens mais baixas. E se a imprensa periódica (não diária) dá o sentimento de ser mais diversificada, o seu pluralismo é bastante relativo e as tiragens muito reduzidas.

A esta fragilidade sem igual na Europa, vem acrescentar-se o facto de a imprensa generalista dita “nacional” ser publicada unicamente em Lisboa e, num só caso, no Porto. Enquanto em Portugal continental há diários em apenas seis cidades “de província”, cinco das quais no litoral centro-norte, sendo todos eles de âmbito puramente regional e mesmo local. E poucos são os semanários publicados no “interior” concebidos em termos profissionais, dispondo de equipas competentes e de difusões significativas.

Para além destas insuficiências estruturais, a penetração da imprensa “nacional” no “interior” do país é tristemente escassa. Haverá, no entanto, quem faça reparar que a rádio e a televisão assumem a desejável difusão nacional. As grandes estações são, de facto, mais ou menos captáveis um pouco por todo o país. Só que, aqui também, os estúdios centrais delas estão todos situados em Lisboa, o Porto tendo conseguido que haja emissões realizadas a partir de lá e conta mesmo com uma pequena televisão autóctone.

A maior parte da área continental do país é pois um vasto deserto da informação. Sem média que proponham uma informação de atualidade global profissionalmente satisfatória, pondo embora um acento particular no local-regional. Enquanto os média “nacionais” continuam pouco interessados em fazer “subir” a informação do “interior” e dar-lhe difusão nacional. Pelo que a atual campanha eleitoral, na dimensão quase unicamente mediática que tomou, pôs em evidência o fosso enorme que existe entre a “gente de Lisboa” e a do resto do país. Um país cujas preocupações específicas pouco interessam os Senhores da “capital do império”.

Perante este panorama desolador, haverá quem contraponha o exemplo das “televisões de informação”, onde muito se fala de eleições. Só que, se autoproclamando como tal, elas pouco mais são do que televisões de opinião. Porque largamente desprovidas de reportagens e de documentários, e até de jornais concebidos com “peças” filmadas e montadas, de modo a fornecerem uma informação no sentido forte do termo. Isto é: onde os factos tenham sido recolhidos, verificados, postos em perspetiva e interpretados.

A estas insuficiências da diversidade acrescenta-se um pluralismo enviesado, bem pouco plural. O que se tornou mais evidente na atual campanha eleitoral, mantendo mais do que nunca em silêncio temas e protagonistas que os Senhores de Lisboa acham ser de segunda ordem. Uma situação insuportável que os poderes executivo e legislativo terão que enfrentar de modo a que a diversidade e o pluralismo dos média possam ser realidades da democracia portuguesa…

Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles, autor do livro “História dos Média na Europa” (Almedina).

texto escrito em 11 de janeiro de 2022.

texto publicado no diário Público, Lisboa, 22 de janeiro de 2022, p. 14.

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