Interrogações escamoteadas

J.-M. Nobre-Correia

As eleições legislativas provocaram vagos sobressaltos em meios políticos e mediáticos. Aspetos há porém totalmente “esquecidos”…

Ao que parece, estamos em tempo de reflexão. É pelo menos o que políticos e editorialistas dizem por aí. Proclamando que há que procurar compreender o que está na origem do abanão provocado pelas eleições legislativas. Há mesmo quem avance já que é na conduta de políticos, partidos e governo que serão encontradas as razões. E é de facto plausível que seja num contexto sociopolítico singular que tais movimentações tenham tendência a operar-se.

É pena que os mesmos editorialistas ou analistas não se interroguem sobre o papel que poderão ter tido os média para o que aconteceu. Houve um diretor de informação que propôs “um caldo de cultura” como explicação para a origem do abanão. Esquecendo que são precisamente os média (tradicionais ou novos), e mais especialmente a televisão, socialmente dominante, que sobretudo fornecessem os ingredientes e até o modo de confeção de esse “caldo de cultura”.

Ora, de que atualidade nos falaram de preferência as televisões desde há longos anos? Que imagem nos propuseram do mundo, da vida nacional, do viver em sociedade? Que temas selecionaram no que se foi passando dia após dia? Que importância lhes deram? Como os abordaram?

Mais concretamente: por que privilegiaram largamente temas politiqueiros, societais e futebolísticos mais ou menos sensacionais? E por que reforçaram muitas vezes esta caraterística, acrescentando imagens, narrativas e terminologias capazes de desencadear o potencial emotivo dos espectadores? Porquê o recurso tão habitual à noção de confrontação num estilo militaro-desportivo entre personagens?

Porquê dar tanta importância às sugestões de serviços de comunicação de corporações interessadas em criar eventos para puro consumo mediático favorável às suas ambições? Porquê pôr em valor desbocados e provocadores desprovidos de discursos razoáveis e iniciadores de facto de disfuncionamentos sociais radicais? E porquê esta presença constante e até mesmo diária dos mesmos personagens, dando o desagradável sentimento de que os telejornais os “levam ao colo”, promovendo a imagem e o discurso deles junto da opinião pública?

Telejornais e demais emissões ditas de informação constituem boa parte das vezes jogos de massacre quotidianos do que de melhor foi construído pela democracia portuguesa nestes últimos 50 anos, em matéria de assistência médica, de ensino, de apoio social, por exemplo. Em vez de uma prática jornalística serena capaz de levar os cidadãos a melhor compreenderem a complexidade das situações.

Nesta procura obsessiva e omnipresente de sentimentos de revolta, de enternecimento, de risos e de lágrimas, instituições e serviços públicos foram permanentemente denunciados. Quando são “esquecidas” instituições e empresas privadas das mesmas áreas, onde cidadãos, que dispõem de meios para aceder a elas, são confrontados a experiências por vezes mais insatisfatórias. Como soberbamente esquecida é a vida quotidiana de cidadãos que trabalham, produzem, criam, sonham e se divertem, por média ditos nacionais, de costas largamente voltadas aliás para “a província”, para o vasto “interior”.

Nos telejornais, o discurso diário permanente é o de uma sociedade que não funciona, de políticos não credíveis, desonestos e quantas vezes corruptos. Embora saibamos bem que calendários, horários, compromissos e respeito pelos outros e pelo espaço público são noções muito vagas no seio da sociedade portuguesa. E que os cidadãos deste país são muito mais adeptos de direitos do que de deveres, de comportamentos desregrados do que de respeito pela lei.

Como espantar-se depois que um eleitorado biberonado quotidianamente com esta visão deprimente do país, a provocar descontentamento arrepios e sentimentos de revolta, vote depois como votou?… Se a democracia portuguesa, 50 anos depois, tiver que ser reconstruída, há que começar por propor aos cidadãos uma informação concebida numa cultura jornalística que lhes permita melhor compreender o mundo em que vivem e acreditar como possível um futuro melhor do que o presente…

Professor emérito de Informação e Comunicação da Université Libre de Bruxelles.

Texto publicado no diário Público em linhaLisboa, 18 de março de 2024.



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